Como Mercenários e a Cultura Bélica Moldaram um dos Melhores Jogos de Estratégia
Créditos: Jagged Alliance 2, cortesia de Darius Kazemi

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Como Mercenários e a Cultura Bélica Moldaram um dos Melhores Jogos de Estratégia

"Recebíamos cartas de pessoas dizendo: 'Cara, amei o seu jogo', e junto vinha uma foto do computador do fã, com um calibre .45 apoiado no teclado."

Lançado em 1999, Jagged Alliance 2 é considerado por muitos um dos melhores jogos de estratégia por turnos já produzidos, e conta com uma narrativa que soa familiar:assassinos de aluguel estrangeiros lideram uma insurreição local contra uma monarquia enraizada, com a ajuda de um extenso arsenal bélico.

Darius Kazemi, um desenvolvedor de jogos que já conversou com o Motherboard antes sobre seu experimento Comprador Aleatório, acabou de publicar um livro detalhando o desenvolvimento do jogo, que foi inspirado por um leque de tópicos muito maior do que você imagina. Kazemi aceitou compartilhar o excerto abaixo, que foca na curiosa relação entre a cultura mercenária semi-ficcional, a revista de "aventuras para machões" Soldier of Fortune, e videogames repletos de metralhadoras. — Derek Mead

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Soldados de aluguel fazem parte dos recursos humanos de guerras desde, pelo menos, a era grega clássica, mas matadores terceirizados históricos estão longe dos mercenários que vemos na cultura pop moderna. Os mercenários da cultura pop são combatentes espontâneos e independentes das forças especiais. Nos anos 80 e 90, eram veteranos do Vietnã; ultimamente, são veteranos da Operação Tempestade no Deserto. O mercenário da cultura pop lembra personagens espirituosos como Jayne Cobb, do seriado Firefly, B. A. Baracus, de The A-Team, ou talvez um dos heróis ultrapassados de ação do filme Os Mercenários.

A imagem pop contrasta fortemente com as forças mercenárias da vida real. Esses grupos surgiram no meio dos anos 90 e se denominaram "companhias militares privadas" ou "prestadores de serviços civis". Eles aplicam teorias da economia neoliberal à militar: numa audiência do Congresso dos EUA, em 2007, Erik Prince, fundador da infame empresa de mercenários Blackwater USA, disse, "estamos tentando revitalizar o aparato de segurança nacional, assim como a FedEx revitalizou o serviço de correios".

Mercenários reais são consultores militares do setor privado, e são aterrorizantes, enquanto os mercenários da fantasia são patifes duelistas. É possível rastrear essa fantasia até as aventuras pulp de piratas e cowboys, e certamente até histórias mais antigas. Mas o progenitor direto da imagem de mercenário moderno nos EUA é a revista Soldier of Fortune (SOF).

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Criada em 1975, a SOF comercializava tanto fantasias quanto a realidade. Era repleta de relatos exóticos de conflitos armados, conteúdo editorial nacionalista, teorias da conspiração, resenhas de armas de fogo e, acima de tudo, anúncios de assassinos de aluguel, que causaram muitos processos e um punhado de assassinatos de verdade. Fred Reed era um colunista da revista no começo dos anos 80, no apogeu da publicação, e escreveu sobre a experiência na edição de março de 1984 da Playboy:

Mitos populares à parte, não existem muitos mercenários hoje, segundo o sentido mais aceito do termo: pequenos bandos de homens brancos contratados para tomar países menos desenvolvidos e travar verdadeiras, ainda que pequenas, batalhas, tudo para receber uma grana. Acontece que qualquer nação – mesmo países de apenas florestas e coronéis – tem um exército grande demais para a alçada de mercenários. As tarifas são baixas, visto que o mundo está cheio de ex-soldados entediados. Claro, há várias categorias nebulosas de homens que podem ser chamados de mercenários, mas é um termo difícil de definir. Capangas e pilotos de cocaína sul-americanos são mercenários? E os americanos que se alistaram no exército da Rodésia e serviram junto a rodesianos nativos? E homens em contrato com a CIA? Então, quem lê a SOF afinal? Fuzileiros navais, Rangers (membros de elite do exército americano) e trabalhadores de colarinho azul em geral, cansados da insignificância da própria vida. O que a revista vende é uma ideia extrema, um sentido lúgubre, uma visão de mundo em forma de florestas, onde os brutos permanecem altivos contra o pôr-do-sol e os fracos não têm vez.A SOF talvez seja a única revista cujos leitores carregam uma baioneta de loja de penhores na outra mão.

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Segundo Reed, no auge de sua popularidade, "esse antro de caricaturas vendia mais que 170 mil exemplares por mês, por três dólares cada".

Em um artigo de 1986, a revista People se referiu à SOF como "uma aventura mensal para machões", traçando uma conexão direta com o gênero "aventuras para homens", das revistas pulp. Nos anos 50, periódicos como Argosy, Man's Life e For Men Only publicavam histórias "verdadeiras", geralmente sobre homens enfrentando as forças da natureza – ou uns aos outros. As histórias pareciam uma versão de época de reality shows, e compartilhavam com o gênero televisivo um desprendimento da realidade. Em algum lugar, há verdades nas histórias, mas isso por baixo de muita edição, promovida para deixá-las agradáveis para um grande público que está atrás de entretenimento. Fundada quatro meses após a queda de Saigon, a SOF manteve a tradição de aventuras masculinas, mas a atualizou para a era pós-Guerra do Vietnã.

Nos anos 80 e 90, à medida que os americanos aprenderam a conviver com os abalos psíquicos da Guerra do Vietnã, Hollywood lançou uma enxurrada de filmes sobre mercenários. Como diz Robert Sirotek, quando os planos iniciais para o Jagged Alliance 1 estavam em curso, em 1991, mercenários tinham "o apelo sexual que estávamos buscando. Estávamos muito à frente do nosso tempo com essa decisão. Quem poderia dizer que [os Estados Unidos] acabariam em tantas guerras?"

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Shaun Lyng, codesigner:
[O tema era mercenários] desde a primeira vez que discutimos o jogo. Lembro que o gênesis foi quando o Ian conseguiu fazer quatro caras ficarem ao redor de seu computador ao mesmo tempo. Acho que a ideia de mercenários surgiu rapidinho, e tiroteio também. Algo envolvendo uma equipe de pessoas com armas. E seguiu dali. Ian Currie, codesigner:
Por algum motivo, não sei por que, eu meio que me ative a um tipo de situação mais militar. Não pensei em fantasia, em jogos de magia, com várias classes. Acho que foi uma questão de falta de experiência, para ser honesto. Eu não tinha jogado muitos RPGs. Só tinha jogado o Eye of the Beholder na época. Mas lembro de pensar: teremos granadas no lugar de feitiços, ataques à distância e algumas lutas.

Depois que o Jagged Alliance 1 foi lançado, a equipe logo percebeu que o jogo que havia construído atraía um público particular de entusiastas de armas e autointitulados sobreviventes. Durante o desenvolvimento do Jagged Alliance 2, tentaram atrair esse público, povoando o mundo com um leque massivo de armas personalizadas, "realistas". O programador Chris Camfield foi encarregado de implementar uma camada tática de mecânica de batalhas. Jogador assíduo de RPGs de mesa, assim como jogos de tabuleiro, Camfield instintivamente recorreu a manuais de RPG (tomos de informações compiladas para ajudar jogadores a criar mundos mais vibrantes) para mais detalhes, e se aproveitou de pesquisas meticulosas, publicadas por outros designers.

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Chris Camfield, Programador (Jagged Alliance 2):
Havia uma diferença entre a cultura dos fãs e a cultura dos desenvolvedores. Quando Shaun, Ian e Alex fizeram o Jagged Alliance 1, não sabiam muito sobre armas. Dito isso, nem eu – apenas algumas coisas que eu tinha lido. Lembro de olhar para o código do JA1 , e a maneira como o dano das armas era definido, como a arma básica dava 10 de dano, a próxima dava 12, e então 14, 16, 18, 20, e por aí. […] O Ian e o Shaun se aproximavam muito mais do ponto de vista de tentar traduzir a experiência de um filme de ação dos anos 80 no formato de jogos de computador. Usei dois livros de RPG sobre diferentes armas para torná-lo mais realista: o livro da editora Palladium The Compendium of Contemporary Weapons (Compêndio de Armas Contemporâneas, de Maryann Siembieda) , e outro dos jogos R. Talsorian, chamado Compendium of Modern Firearms (Compêndio de Armas de Fogo Modernas, de Kevin Dockery). Pensando agora, acho que os livros mostravam alguns números, listavam rapidez de tiros, tipos de cartucho e peso das balas em gramas. Acho que, no início, tentei estimar o valor de dano de uma arma baseado na velocidade do tiro da arma e peso da bala. O [Compendium of Modern Firearms] também contém diversos índices de probabilidade de acertar um alvo de certo tamanho, ou quão extensa seria a propagação das balas de uma arma particular. Isso provavelmente foi levado em conta nos valores de precisão. Mas esses números ainda tiveram que passar por uma espécie de triagem para deixar a progressão melhor. Ainda assim, houve fãs que disseram: "Os desenvolvedores não pensaram merda nenhuma sobre as armas, os números deveriam ser assim, eu faria muito melhor!" Ian Currie, codesigner:
Recebíamos cartas de pessoas dizendo: "Cara, amei o seu jogo", e junto vinha uma foto do computador do fã, com um calibre .45 apoiado no teclado. Percebemos que vários entusiastas de armas adoraram o jogo, e isso foi irônico porque nenhum de nós havia sequer encostado numa arma!

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O realismo dos jogos é precisamente o realismo da revista Soldier of Fortune: tanto o JA2 quanto a SOF tentam dar a seu público a sensação de como imaginam ser a vida de um mercenário. Em termos gerais, videogames de guerra são percebidos como realistas. No entanto, há sempre três fatores diferentes em jogo: a realidade das guerras, a fantasia do videogame e a fantasia de guerras, que é criada pelo exército, pela indústria de entretenimento e pela mídia. Não importa o que um jogo de guerra se propõe a fazer – inevitavelmente, ele simula a fantasia cultural de guerra, nunca a própria guerra.

A equipe do Jagged Alliance sempre tentou simular "a experiência de um filme de ação dos anos 80", como Camfield diz. Um jogo em que o propósito fica evidente em seu sistema de criação de itens. Por mais estranho que pareça, todo o sistema de criação de itens é um easter egg disponível no jogo, obliquamente indicado na interface de pistas do usuário. Não há um menu especial para criação de itens. Em vez disso, o JA2 ensina o jogador que é possível combinar, digamos, dois cartuchos pela metade com um cartucho cheio, arrastando um item até o outro. Dá para usar essa mecânica (emprestada de aventuras point-and-click) para combinar certos itens especiais e criar novos equipamentos. A maioria dos itens dispersos no jogo são estritamente utilitários, como armaduras, armas, munição e kits de cura. Mas, de vez em quando, é possível encontrar quinquilharias, como barras de alumínio, fita isolante ou molas velhas e enferrujadas.

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Esses itens não fazem nada sozinhos, mas se o jogador estiver familiarizado com o seriado MacGyver (1985-1992), saberá o que fazer com eles. O herói do programa é famoso por resolver problemas usando pouco mais do que quinquilharias domésticas. Em um exemplo típico, ele "mistura pesticida, raspas de sabão e desinfetantes de piso numa panela quente para distrair os inimigos com uma cortina de fumaça". Em clara homenagem ao MacGyver (cujo protagonista trabalha para uma empresa privada de estratégias militares, semelhante à Blackwater), o Jagged Alliance 2 permite com que o jogador combine um rumble pack para controles de videogame, uma ampola de raios X, um pacote de chicletes, um console portátil e um fio de cobre para criar um aparelho de raios X capaz de lhe informar as posições dos inimigos por trás dos muros.

Havia outra ligação, bem mais pessoal, entre a equipe do Jagged Alliance e a cultura mercenária. O Jagged Alliance 2 tem uma história interna, uma Associação de Mercenários Internacionais fictícia, que estreou no primeiro jogo:

Em um bunker subeterrâneo, em 1991, três homens, conhecidos apenas por seus aliados – Coronel Mohanned, Comandante Spice e O Asiático Branco – encontravam-se no calor de uma batalha armada, sem acesso o suficiente a forças de trabalho para terminar as hostilidades. Com grandes esforços, asseguraram um financiamento e localizaram as pessoas necessárias para concluir o conflito.

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Esse texto faz referência às origens do Jagged Alliance 1 em um porão de Montreal, em 1991, com a equipe de Mohanned Mansour, Ian Currie, e Shaun Lyng. Em poucas palavras, eles conseguiram descrever suas origens como desenvolvedores malucos de videogames trabalhando em um jogo bem extenso, e enfim conseguiram apoio financeiro da Sir-Tech para ajudá-los a finalizar o projeto.

Não é difícil enxergar os paralelos entre a fantasia da vida mercenária e a realidade de ser um prestador de serviços na indústria dos videogames. Desenvolvedores de jogos terceirizados costumam se descrever como "armas de aluguel". São motivados, em primeiro lugar, pelo dinheiro, e trabalham para quem estiver pagando - embora, de qualquer forma, muitos desenvolvedores se orgulhem do trabalho, assim como um herói mercenário com um coração de ouro.

EQUILIBRANDO CULTURAS

Apesar dos fãs principais de Jagged Alliance clamarem por "realismo" na sequência de JA2, Ian Currie já estava cansado das amarras disso.

Ian Currie, codesigner:
Para o JA2, dissemos que seríamos [mais realistas], mas, ao mesmo tempo, eu já esperava por um pouco mais de escapismo no jogo. O JA1 não foi um enorme sucesso, nada perto de X-COM, e imaginei que talvez fosse porque não há escapismo o bastante no jogo. Quando você chega em casa, quer jogar fantasia ou ficção científica, certo? Quem quer ver algo realista? Digo, brincar de mercenário é uma fuga da vida real. Mas me convenci de que precisava de mais escapismo, e é isso que estava por trás do modo de ficção científica.

Currie e sua equipe acrescentaram uma série de missões ao JA2, apresentando os Crepitus, uma raça de insetos gigantes e monstruosos, biologicamente projetados pela Rainha Deidranna. Qualquer semelhança com o design de H. R. Giger para o extraterrestre do filme Alien (1979), de Ridley Scott, não é mera coincidência. As missões demandam um estilo de jogo significativamente diferente do restante do jogo. Os Crepitus navegam por meio do olfato, em vez de visão e audição, então furtividade vira uma questão de ocultar o próprio cheiro. A inteligência artificial do jogo, baseada em odores, é bastante complexa, a ponto de um jogador poder instruir um mercenário a esfaquear outro, usar o ferido para deixar um rastro de sangue e atrair os Crepitus a um local desejado. Os altos valores de armadura e ataque frontal dos Crepitus dão ao jogador uma razão para configurar suas armas em modo automático e liberar uma rajada de tiros – opção que contrasta fortemente com a mecânica usual do jogo, de camuflagens, esperas e tiros a queima-roupa em inimigos ocultos.

Ao acrescentar esses monstros, a equipe buscava oferecer uma mudança refrescante no ritmo da experiência do JA2. Quando a equipe lançou uma demo do JA2, quase um ano antes do lançamento completo, os Crepitus estavam inclusos em um porão secreto. A resposta dos fãs não foi positiva, e no fim das contas, Currie decidiu converter todo o conjunto de missões relacionadas aos Crepitus, inimigos, itens, diálogos e personagens não manipuláveis, em um modo de ficção científica, que pode ser ativado ou desativado no começo do jogo.

Numa estratégia paralela, a equipe examinou a lista completa de armas que Camfield tinha criado para o JA2, e decidiu que havia tantas armas, que a maioria dos jogadores se sentiria sufocada com as opções disponíveis. Para combater o problema, adicionaram um modo "Toneladas de Armas", que, assim como o modo de ficção científica, pode ser ativado no princípio de uma nova partida.

A equipe lidou com tensões entre a cultura extrema de entusiastas de armas e uma cultura de fãs mais abrangente, deixando o jogador ligar ou desligar grande parte do conteúdo do JA2. Isso nunca daria certo na maioria dos estúdios de jogos, mas logo ficará claro que a Sir-Tech não é como a maioria dos estúdios de jogos.

Tradução: Stephanie Fernandes