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Tecnologia

John Cage Era um Gamer

Cage, um músico, escrito e artista visual, não era aquele tipo de gamer viciado no Steam – mas ele tinha todos os sintomas.
Créditos: David Silver/Flickr

Esta semana marcaria o aniversário de 102 anos de John Cage. Você deve conhecer o compositor como um pregador de peças do mundo da arte, que fez plateias sentarem e escutarem 4 minutos e 33 segundos de silêncio em três movimentos. E você provavelmente o considera uma figura muito influente, responsável por inovar discussões de arte sobre operações ao acaso, ou desenvolver o gênero da música "aleatória". Ou talvez você nunca tenha ouvido falar dele.

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Em vez de recorrer a 4 minutos e 33 segundos de silêncio, gastamos esse tempo tentando lembrar dele não como um troll ou herói da arte conceitual, mas como um cara que fez várias coisas espirituosas ao longo da carreira, e parecia se divertir muito. John Cage – não, não aquele John Cage, diga-se de passagem – gostava de estruturar suas atividades como jogos, a ponto de servir de bom modelo para o termo "gamer", cada vez mais reprimido.

Claro, ninguém ousaria dizer que Cage, músico, escritor, artista visual e intérprete, era do tipo de gamer obcecado por destravar achievements no Steam – até porque ele morreu em 1992 –, mas em vários momentos, ele revelou ser alguém que jogava com as plateias e ideias, o que é bem mais divertido que ser um amante esquisito de longos silêncios, ou um artista conceitual esnobe, desprezando plateias.

Da mesma forma, visto que o termo "gamer" é considerado uma moda antiga, mais resiliente que nunca, ou está prestes a cair em desuso completo, dependendo do interlocutor, por que não aproveitar a oportunidade do aniversário de Cage e experimentar exemplos de projetos semelhantes a jogos, para ver se há algum outro sentido em fazer, jogar e discutir jogos?

JOHN CAGE, CONVIDADO DE GAME SHOW

Cage foi a um game show transmitido no país inteiro, em 1960, quando ele já era um compositor notório no mundo da música experimental e um membro do corpo docente da New School. Foi uma escolha esquisita de convidado na época, assim como seria agora - Cage não se encaixava no modelo de participante de um game show qualquer, tampouco no modelo de celebridade convidada. Entretanto, Mark Goodson e Bill Todman, produtores do programa I Have a Secretda CBS, devem ter pensado que seu talento oculto para criar músicas experimentais com eletrodomésticos daria um bom episódio.

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I Have a Secret era um programa de auditório em que celebridades tentavam deduzir o segredo de um participante com perguntas de sim ou não.No vídeo acima, Gary Moore, o apresentador do programa, decide que o "segredo" de tocar músicas com "uma jarra de água, um cano de ferro, um apito para caçar gansos, uma garrafa de vinho, uma batedeira elétrica, um apito comum, um regador, cubos de gelo, dois címbalos, um peixe mecânico, um apito para caçar codornas, um pato de borracha, um gravador, um vaso de rosas, um sifão para água gasosa, cinco rádios, uma banheira e um PIANO DE CAUSA" era algo extraordinário, e tomaria tempo o suficiente para pular a parte do programa de adivinhação com celebridades.

No lugar, Cage se dedica a algo como um jogo que ele mesmo construiu. Acompanhando um cronômetro e marcando momentos pré-determinados, em que cada objeto costuma fazer um som, Cage corre sobre uma espécie de plataforma musical, alcançando suas marcas a tempo, com a expressão relaxada e satisfeita de alguém que sabe como executar cada movimento frente à plateia.

Estabelecer uma série de objetivos, controlá-los e então se apresentar com maestria para uma audiência televisiva extensa deve despertar a mesma sensação que executar um jogo de videogame em velocidade máxima no Twitch.

CAGE COMO PROGRAMADOR

Cage se interessava por códigos computacionais muito antes da programação estar em voga ou ser algo que todos os garotos precisam aprender. Assim como Warhol, Cage foi um dos primeiros defensores da arte computacional.

No artigo "Are We an Audience for Computer Art?" ("Será que Somos uma Plateia para Arte Computacional?"), ele enunciou a frase célebre: "Precisamos é de um computador que não poupe trabalho, mas que aumente o trabalho que executamos." Dado o trabalho virtual excessivo de jogadores ao minerar ouro ou itens especials em qualquer MMORPG, talvez os videogames contemporâneos possam ser vistos como uma resposta a esse desafio de 1966.

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Cage tentou responder a seu próprio desafio, colaborando com Lejaren Hiller numa composição extensa, impulsionada por computadores e cravos, chamada HRPSCRD (diz-se "harpsichord", "cravo" em inglês), na Universidade de Illinois, em Champaign-Urbana, em 1969.

A banda reunida para a peça tinha um montante impressionante de sete solistas de cravo, acompanhados por cinquenta e dois magnetofones repetindo uma variedade de sons, provenientes de duzentos e oito fitas geradas por computadores. As seleções das fitas eram controladas por programas escritos por Hiller em FORTRAN, uma linguagem de programação lançada pela IBM em 1957, bem popular no início da computação, com direito a cultos até hoje.

O espaço da apresentação foi coberto por diversos slides e projeções, e um trecho da obra chegou ao YouTube. A plateia foi encorajada a caminhar pelo espaço, ao lado dos músicos. Segundo consta, foi uma festa e tanto, repleta de experiências sensoriais que muitos já tentaram dissecar e até mesmo recriar. Foi re-encenada em 2013, no museu Eyebeam, em Nova York, onde a descreveram como uma "orgia de meios de comunicação".

Antes disso, entre 1961 e 1964, um modelo de grupo de estudos de Cage inspirou o artista James Tenney a oferecer oficinas secretas de programação para artistas, em Nova York. Pesos-pesados da arte, como Dick Higgins, Alison Knowles, Max Neuhaus e Nam June Paik, se reuniram em Chelsea para aprender FORTRAN, algo parecido com os encontros de programadores atuais, espaços de hackers e fóruns de desenvolvimento co-op de jogos.

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Relatos da HRPSCRD, das oficinas de FORTRAN do James Tenney e de toda sorte de registros antigos e interessantes sobre arte computacional estão disponívels no livro Mainframe Experimentalism.

CAGE COMO MESTRE DE XADREZ

No embalo de arte conceitual e da maior e mais acalorada partida de xadrez de St. Louis, eu seria relapso caso não mencionasse a vez que Cage jogou xadrez contra ninguém menos que Marcel Duchamp, com um tabuleiro especialmente preparado, sensível a sons.

Foi uma partida e tanto, um verdadeiro evento histórico, tanto para a história da arte quanto para amantes de jogos de tabuleiro, dois titãs da arte conceitual batalhando em um jogo que serviu para Cage passar um tempo com uma de suas maiores influências e promover uma performance musical ao vivo.

Numa composição chamada Reunion, uma partida decisiva de meia-hora se deu entre Duchamp e Cage no Teatro Ryerson, em Toronto, em 1968. (Cage e Teeny Duchamp, mulher de Marcel, também começaram um segundo jogo, mas demorou muito e a partida teve que ser concluída em Nova York dias depois.)

A mesa utilizada foi um tabuleiro de xadrez especial, gerador de músicas, criado por Lowell Cross e um grupo de colaboradores. Cada casa foi equipada com resistores dependentes de luz, de modo que o movimento das peças de xadrez engatilhavam sons, formando uma composição musical governada pelo acaso.

No fim da partida de trinta minutos, Duchamp facilmente derrotou Cage, mesmo optando começar com o déficit de um cavaleiro a menos. Mas quem é o verdadeiro vencedor, considerando que Cage pôde jogar uma partida de xadrez, criar uma performance musical e passar tempo de qualidade com um mentor, tudo ao mesmo tempo? Poucos atos da história dos jogos foram tão produtivos.

O que serve para mostrar o quão elástico pode ser o conceito de "gamer". Por outro lado, poderíamos nos propor a seguir o exemplo de Cage e, volta e meia, aprender algo sobre o silêncio.

Tradução: Stephanie Fernandes