"Eu não aguento, vou falar: TIRA ISSO!"Eu ouvi atônita. Em mais de 15 anos de carreira profissional juro que demorei alguns segundos para entender o que ela havia dito."TIRA ISSO!"Ela repetiu com olhar de desprezo diante de toda a equipe que ficou muda."TIRA ISSO!""Isso" a que a general manager se referia eram minhas tranças. E como um vento gelado que vem trazer o terror do inverno glacial, ela me discriminou, abertamente ordenando que retirasse minhas tranças ("Prefiro seu cabelo como antes") e saiu andando falando ao celular como se dar ordens e constranger pessoas publicamente fosse algo corriqueiro em sua vida. E assim terminaria mais um dia de trabalho, mais um dia de racismo e discriminação dentro de uma corporação. Mas dessa vez não, dessa vez seria diferente.
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O mercado livre e o mercado de escravos
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Quando eu trancei meu cabelo, desde o primeiro minuto fui colocada em uma situação de stress pelo gerente — o que me chamou de negrita, lembra? Ele disse que a general manager da empresa não iria gostar e que diria algo porque, segundo ele, ela era uma pessoa muito preconceituosa. Achei estranho o gerente se comportar daquela forma, parecia muito incomodado com minhas tranças ("Quanto tempo você vai ficar assim?" "Você já teve outros empregos com esse cabelo?"). Era uma situação limite que me gerou muito mal-estar e sentimento de não pertencimento. Como pessoas que perguntam se "você lava seu cabelo?" ou "você é macumbeira?" podem de fato aceitar a sua cultura?Eu estava tensa e sozinha. A que ponto chegamos em que uma profissional graduada e com experiência teme ser destratada por causa do seu cabelo? Não era para me proteger do racismo que meus pais de deram uma excelente educação? Será que nada nem ninguém pode impedir que eu seja humilhada simplesmente por ser preta e usar meu cabelo como uma mulher preta? Alguém está me ouvindo?O Brasil é uma país de extrema desigualdade social e isso se reflete dentro das empresas onde há poucos profissionais pretos ocupando posições de gerência e diretoria. Nos níveis mais qualificados há pouca diversidade étnica e cultural, o que garante um ambiente homogeneizado e propício a preconceitos.No nosso já conhecido racismo brasileiro existe uma cultura que favorece esse tipo de comportamento ofensivo quando se pode falar o que bem se desejar no ambiente profissional, baixo a olhares dissimulados de gerentes, diretores e até presidentes que tratam o comportamento como natural, algo aceito e até esperado dos funcionários. Vai dizer que você nunca presenciou uma frase ofensiva ou uma risadinha machista ou homofóbica no seu escritório? Aposto que você não fez nada, não é mesmo?
O que acontece depois que conseguimos os empregos
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Nas grandes corporações onde o ambiente deveria ser "neutro" e a diversidade é um valor almejado, o clima muitas vezes se assemelha a locais de socialização como bares onde se fala sobre um pouco de tudo. "Eu tenho nojo de X", "Y para mim é tudo estuprador", "Z não são como nós"* seguidos de " É apenas minha opinião!" eram frases que eu ouvia quase que diariamente.Depois do episódio agressivo e grotesco protagonizado pela general manager da empresa, fui procurar a gerente de RH. Esperava ter aquele conflito mediado e que a agressora ao menos se desculpasse e que o caso fosse reportado para a matriz, pois se tratava de agressão grave cometida dentro da empresa. Mas infelizmente nem todos os profissionais conseguem ter empatia e agir de forma humana, são apenas engenhos de uma grande máquina empresarial. Além de não ter havido nenhum pedido de desculpas ou mesmo um sinto muito (como pregam as cartilhas de comunicação corporativa sobre resolução de conflitos), ainda tive que ouvir da general manager o clássico "você que é racista", já que ela era casada com um "descendente de negros" ("se eu fosse racista não teria me casado com quem me casei") e ainda a ver se apropriando do poder-ser racista ("se eu fosse racista você não passaria daquela porta").Para continuar a cadeia de humilhações, ela chamou toda a equipe ("ninguém será demitido se falar a verdade") e perguntou: "alguém acha que eu sou racista?". Diante da gerente do RH, a general manager afirmou que a partir de agora as pessoas seriam investigadas antes de serem admitidas na empresa "para não criarem problemas". Foi realmente chocante e deplorável. Depois, soube que a empresa com sede nos EUA já tem histórico de discriminação no escritório brasileiro contra seus empregados, e que inclusive a general manager em questão já foi reportada para a sede norte-americana sem nada acontecer.
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Depois dessa reunião, onde a general manager disse, entre outras coisas, que a estratégia da empresa era contratar "pessoas bonitas", foi iniciada uma investigação interna com os presentes no dia do fato. Como previsto, quando os trabalhadores são expostos à sua vulnerabilidade, meus colegas de equipe, aqueles que me viram sair chorando, ficar triste no trabalho e ter crises de dor de estômago depois do ocorrido, ficaram do lado da empresa dizendo que não houve racismo, afinal, a general manager tratava todos mal igualmente. Não culpo esses trabalhadores e nem gostaria de estar no lugar deles que dependem de viver em um ambiente tóxico para sobreviverem. Empatia é para poucos, as pessoas comuns se acovardam diante das situações de injustiça e foi o que aconteceu.É difícil para pessoas que só usam a cultura preta para se apropriar ou "curtir" terem um lastro de empatia quando algo assim acontece. É divertido ir no pagode, frequentar os terreiros de umbanda, dizer que é preto por dentro porque ama a Beyoncé, mas assumir o racismo da general manager seria assumir seu próprio racismo. As mesmas pessoas que me mandaram mensagens de apoio em um dia, no outro deram seu depoimento e resumiram o caso a apenas uma fala rude de uma pessoa que não gostou do visual da outra. Eles desconsideraram que uma mulher preta de tranças está longe de ser apenas um visual, um look. É uma expressão de identidade cultural e respeitar isso é fomentar a diversidade na empresa.
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