FYI.

This story is over 5 years old.

Música

Já não há rádios pirata, mas era fixe se ainda houvesse

Quem é que, nos dias de hoje, seria capaz de criar uma?

Quem é que, nos dias de hoje, seria capaz de criar uma rádio pirata? Adorava que vocês tivessem tomates para correr esse risco. Não é nada de muito complicado: basta passar por uma loja de electrónica e seguir as instruções num guia online, como o

da editora Deriva. Mas com cuidado, para não verem o sol a nascer aos quadradinhos durante três anos ou pagarem uma multa até 320 dias com base no ordenado mínimo — diz a ANACOM, que garante fiscalizar constantemente o espectro radiofónico. Já estão a ver o filme todo? Os piratas acreditam que não é possível recriar este movimento. Mas não necessariamente por causa da fiscalização. Américo Mascarenhas, pirata de Coimbra, da antiga Rádio Livre Internacional, lembra-se de que uma vez os Serviços Radioeléctricos encontraram o esconderijo da rádio e apreenderam o emissor. Os estudantes revoltaram-se à porta da reitoria e, “pouco tempo depois, com novo emissor”, voltaram à “guerra com emissões diárias em várias repúblicas”. Os antigos fora-da-lei argumentam que o problema é mais uma mudança social e geracional. “A rádio ainda tinha esta mística de papel na educação, porque é impossível abstrairmo-nos do facto de olharmos para o lado e termos uma geração que cresceu a ouvir o António Sérgio e o Rock in Stock. Agora tens uma geração que só gosta dos Morangos e do Justin Bieber”, diz Alex FX, pirata da portuense Rádio Delírio. Nasci depois da queda do muro de Berlim, depois do lançamento do último álbum de jeito do Michael Jackson — Bad — e, claro, depois da lei que, em 1988, obrigou à legalização das rádios e enterrou este movimento em Portugal. Não tive direito a ligar a rádio sem saber muito bem que estação era aquela, quem eram aquelas pessoas ou de onde me falavam. Não tive direito a essa espera curiosa por música nova, pelo sentimento de prazer surpreso de a partilhar com um grupo. Hoje vivemos a música de uma forma egoísta. Escondemo-nos nos nossos iPods, de phones nos ouvidos, e mesmo quando estamos com outras pessoas, cada um de nós ouve o seu próprio som. Vamos regressar a uma época em que o “vrrr… czzz… tjjj…” de uma frequência de rádio vazia era substituído por vozes de miúdos escanzelados, fechados em quartinhos apertados — as vozes das rádios pirata que marcaram toda uma geração, alimentando-a de subculturas alternativas que têm vindo a perder-se nos tempos de hoje. Foi uma época em que uma falha na lei permitia que as rádios emitissem em qualquer frequência, pelo que não eram exactamente ilegais, apesar de também não serem propriamente bem-vindas. Inicialmente, o Estado tentou dizimar as rádios pirata que iam surgindo, mas o movimento propagou-se tão depressa e a uma escala tão grande que deixou de ser possível controlá-las, quase como acontece agora na internet com o P2P, para os miúdos do 2.0 perceberem melhor. O “éter radiofónico era uma espécie de estendal da roupa onde, desde que houvesse espaço, se metia mais um trapo e uma mola”, diz Alex FX. Para mim, era mais como na feira, com as estações a atropelarem-se e a encolherem-se, amontoadas em frequências que nem se sabia muito bem qual o alcance e, até, se eram partilhadas. Além disso, a qualidade da transmissão não era uma prioridade. Para criar uma rádio bastava uma mesa de mistura e um emissor, muitas vezes construído artesanalmente pelos próprios locutores. Segundo Isidro Lisboa, da Rádio Nova, e que na altura se estreava na pirata de Castelo de Paiva, esses locutores eram uma espécie de “Professores-Pardais sempre prontos a sacar do ferro de soldar e a arranjar um cabo que se tinha quebrado”. Ou seja, nada como estes locutores actuais, que se limitam a alapar o rabo numa cadeira almofadada e a emprestar a voz ao microfone. Nas rádios pirata, os locutores eram mesmo parte da rádio. Abdicavam de horas de almoço, tempo livre e namoradas para preparar os programas que, sem computadores — instrumentos que na altura eram uma espécie de extraterrestres — passavam por outras formas de pesquisa: ler revistas de música, fanzines, jornais estrangeiros e servir-se do “boca a boca”, fosse falar com distribuidores de lojas de discos ou trocar impressões sobre concertos com os amigos. A rádio era para eles um objecto de carinho e estavam sempre dispostos a passar lá mais tempo, a forrar as paredes com esponja para isolar o som e a melhorar a redacção que, muitas vezes, não passava de um sótão, uma cozinha, um quarto-de-banho ou qualquer outra divisão que estivesse disponível. O que nem é assim tão má ideia quanto isso — pelo menos não tinham grandes problemas se tivessem que dar uma mija a meio da emissão. Como faltavam os meios, compensavam através de ideias malucas que os pudessem tornar mais profissionais. Para fugir à fiscalização, mudavam constantemente o emissor de sítio (um frade franciscano com uma navalha disse uma vez que a solução mais simples é muitas vezes a melhor, parece que tinha razão). Hoje contamos os “gostos” nos nossos status do Facebook ou o número de seguidores no nosso Twitter, mas, para terem uma ideia do tamanho das audiências, os terroristas da rádio criavam passatempos telefónicos, muitas vezes fictícios, e contabilizavam o número de pessoas que ligavam. De modo a evitar que uma rádio rival reproduzisse um tema raro que só eles tinham, falavam a meio da música, como que inserindo uma daquelas marcas de água irritantes que tornam uma foto chunga ainda mais chunga — sem ofensa à música que passavam, de certeza que era fixe —, impedindo que fosse gravada e passada noutro contexto. Quando queriam pôr o disco em pausa usavam a escova de limpeza, que entalavam entre o disco e o braço da agulha. Para ocupar as horas em que não havia emissão, gravavam a mesma música dos dois lados da cassete e repetiam-na continuamente. “Dava para tudo. Num dos primeiros passatempos que imaginámos, pedimos que nos trouxessem o maior calhau que encontrassem”, lembra Jorge Gabriel que, antes de se lançar no mundo da televisão, fundou com uns amigos a Rádio Onda Livre da Amadora, que emitia num raio de 30 metros. Basicamente, para todos os vizinhos. Isidro Lisboa também se lembra de um sinal horário inovador que surgiu nessa altura. Em vez do habitual “pi pi pi” que servia para marcar as horas, havia uma voz que perguntava em inglês what time is it?, à qual o locutor respondia, em português, “são três da tarde”. As rádios pirata “eram todos esses pormenores — o lado da novidade, da surpresa, de dares um pontapé no caixote e surgirem imensas ideias”, acrescenta Isidro. Tudo isto veio fazer frente à rádio convencional e mudar a própria maneira de a fazer. As únicas duas rádios legais que existiam, a Rádio Difusão Portuguesa — agora Antena 1, 2 e 3 — e a Renascença, rádios sediadas em Lisboa, tinham sempre os mesmos locutores, falavam de uma maneira demasiado formal e passavam sempre as mesmas músicas. Um bocado como são agora, mas pior. As rádios pirata vieram abanar esse conceito. Eram rádios locais, com uma linguagem mais popular, que não se preocupavam em dizer merda ou outra caralhada qualquer quando achavam oportuno (como fiz agora mesmo). Falavam do que quisessem. “Tínhamos programas sobre uma época, sobre um músico específico, sobre um país”, lembra João Costa, da Rádio Delírio. “Cheguei a fazer um programa de rock soviético com discos que um amigo me trazia de Moscovo. Ele dava aulas de russo na Faculdade de Letras, então metade do programa era emitido nesta língua, para incentivar os alunos dele a ouvir.” Luís Freixo, que na altura estava na Rádio Universitária do Porto, também se lembra de uma vez ter dedicado um programa à homossexualidade, que nessa altura ainda não tinha saído do armário, e que criou bastante polémica na comunidade estudantil. Talvez houvesse coisas meio disparatadas, mas pelo menos havia essa procura em ser diferente, “era uma altura em que havia rockabilly, psychobilly, punk, skinheads, góticos e tudo isso gerava conteúdos musicais muito específicos, alternativas àquilo que era universalmente aceite e apreciado, como o fado, lembra José Carneiro, pirata da Rádio Caos, do Porto. Numa época de pós-ditadura em que o país tinha estagnado, a música independente nacional estava a dar os primeiros passos. Havia poucas discotecas e era muito difícil obter discos que, na sua maioria, tinham de ser importados. Cabia portanto às rádios pirata difundir o que se fazia lá fora e incentivar uma procura por novos sons. Basta ouvir o genérico que Luís Freixo me trouxe do programa Os Três Porquinhos, em que participava, na Rádio Universitária do Porto. Quem estivesse no Porto em 1987 e sintonizasse em 99.45 FM durante o fim-de-semana às 14h00, ouvia, tal como no início do conto, uma música de xilofones seguida da voz grossa do narrador: “Era uma vez, três porquinhos irmãos. Um dia resolveram procurar um lugar para construir as suas casas. E esta história começa quando eles chegaram a um vale muuuito verde perto da floresta.” A voz esganiçada de um dos porquinhos interrompia: “Não é um lobo mau qualquer que nos vai impedir de viver aqui dentro.” Se ainda não perceberam, o lobo mau representava as rádios legais, aquilo que era socialmente aceite, o mainstream que Os Três Porquinhos prometiam combater, com o slogan que o locutor lia de seguida: “Os Três Porquinhos, uma viagem ao abrigo da música popular.” Avançando 25 anos no tempo, na mesma frequência ouvem, por exemplo, Ana Malhoa — a quem a Rihanna copiou o estilo. “No meu tempo é que era bom!” Ah, espera, este é o meu tempo. Não admira que ninguém ouça rádio. As músicas são sempre as mesmas, organizadas em playlists repetidas exaustivamente, interrompidas por anúncios a carros, créditos para os conseguir e garagens para os lavar. Todas as mudanças parecem ter-se perdido com a legalização das rádios, em 1988. Mesmo a localização parece ter desaparecido, como fazem notar alguns ex-piratas. “Muitas das estações a quem foram dadas licenças transformaram-se em simples retransmissores de grandes estações dos grandes centros”, diz Américo Mascarenhas. Isto acontece pela diferença de estatutos. As rádios pirata sobreviviam da vontade de quem as fazia, que muitas vezes tinham até de largar uns cobres para as manter. A sua legalização tornou-as num negócio e um negócio só faz sentido se der dinheiro. É a publicidade que sustém as rádios, portanto é a publicidade que vai decidir que tipo de música vai passar. E acham que essa gente da gravata, que passa mais tempo ao telefone a organizar mercancias do que com pessoas de quem gostam, percebe alguma coisa daquilo que o pessoal curte? São demasiado organizados, tipo aquelas pessoas que se puseres o cinzeiro dois milímetros para o lado vão reparar e ficar chateadas. Eles têm medo dos riscos, como diz Luís Freixo: “Hoje em dia quando se lança um produto já há uma estratégia de mercado muito bem pensada. Perdeu-se essa ideia de fazer coisas mesmo que, à partida, as pessoas não achem piada. Nas pirata aquilo podia correr bem ou mal, mas fazíamos. Acho que essa ideia de risco é que é determinante.” A rádio era vista como uma forma de convívio e os piratas formavam uma comunidade, ligados pelo prazer que sentiam pela música, pela sua vontade de saber mais. “Havia uma espécie de diálogo, uma atmosfera que nos unia, essa ideia de ser alternativo, uma partilha de informação e interesses comuns”, explica José Carneiro. “Aquilo era uma espécie de diário musical partilhado com um grupo de pessoas.” Amigos ouviam os programas uns dos outros, comentavam o que tinham ou não gostado, davam ideias para os programas seguintes; era “uma espécie de rede social da época”. Quero acreditar que podemos trazer de volta este fenómeno, que fazer reviver o lado pirata da rádio nos possa fazer repensar a forma como ouvimos e partilhamos a música e nos traga formas esquecidas de interacção. Mais não seja, se forem daqueles mais cagadinhos, através da internet, com as rádios online, que, diz a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), podem existir sem licenças. Sempre têm a vantagem de poder usar podcasts, e um podcast é para sempre. Talvez a internet seja esse “buraco na lei” da nossa geração. Talvez nos traga de volta um bocadinho daquilo que Alex FX resume ser a rádio pirata: “Um serviço de alfaiate musical, costumizado para os teus clientes. Só não recebes dinheiro e ordens para o fazer — estás a fazê-lo com o teu gosto, a entregá-lo de mão beijada. Acho que não há nada mais puro do que isso. E o que caracterizava as rádios pirata era essa pureza. A pureza no meio da ilegalidade. No fundo era como Adão e Eva em LSD.” Fico então à vossa espera. Enviem-me as vossas frequências rádio, os vossos links ou podcasts — o meu contacto é [este](mailto: rebeca@vicept.com). Afinal, já cantavam Os Três Porquinhos, “quem tem medo do lobo mau, lobo mau, lobo mau? Quem tem medo do lobo mau, la la la la la”. Fotografias cedidas por Luís Freixo, Américo Mascarenhas e Alberto Guimarães