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Politică

“A terceirização já é metade da reforma trabalhista”, diz historiador

Para professor da Unicamp, projeto aprovado pela Câmara quer destruir identidade da classe trabalhadora e cria uma explosão de trabalho precarizado.

Quem será que vai pagar o pato? Foto: Agência Brasil

Pego de surpresa, o trabalhador brasileiro foi presenteado com a notícia na noite do dia 22 de março: desengavetado pelo presidente da Câmara dos Deputados Rodrigo Maia (DEM-RJ), um projeto de 1998 que aprova a terceirização irrestrita do trabalho no Brasil passou com margem apertada na Câmara. O projeto, que tramitou pela Câmara e o Senado ainda nos anos FHC, e estava parado desde 2002 na Casa presidida por Maia, dependia apenas de uma votação simples para entrar em vigor após a sanção presidencial. Dito e feito, e por 231 votos a 188, numa votação apertada e de quórum prejudicado, o projeto velho vai ser sancionado na íntegra por Michel Temer.

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Mas o que significa essa decisão? "A lei de terceirização que foi aprovada é praticamente 50% do que era dado como reforma trabalhista", explica o historiador e professor da Unicamp Fernando Teixeira da Silva, autor do livro Trabalhadores no Tribunal: Conflitos e Justiça do Trabalho em São Paulo no Contexto do Golpe de 1964. "A outra metade vai ser a chamada prevalência do 'negociado' sobre o 'legislado', onde os contratos individuais vão ter mais força que a CLT e os direitos garantidos pela Constituição de 1988", constata, ecoando a análise feita por Antonio Augusto de Queiroz, do Diap, em matéria publicada aqui no ano passado.

"Os contratos individuais vão ter mais força que a CLT e os direitos garantidos pela Constituição de 1988" — historiador e professor da Unicamp Fernando Teixeira da Silva

Teixeira da Silva combate também o discurso que a reforma trabalhista seria na verdade uma modernização das leis brasileiras para se adaptar à realidade econômica de um país que passa pela maior recessão de todos os tempos. "Muitas vezes se enfatiza o aspecto econômico da medida, em termos de aumento de emprego, redução dos custos do trabalho, o tão falado 'custo Brasil' e etc. Mas na verdade é um projeto muito mais político, porque com ele se fragiliza todo tipo de instituição consolidada, seja os sindicatos, a Justiça do Trabalho, que foram fortalecidas durante décadas. O que está por trás disso é manter uma insegurança permanente, estrutural, entre os trabalhadores. Isso permite que o exercício da dominação seja feito de uma maneira mais tranquila por parte dos empregadores. Não é só para não pagar o salário, mas também para eliminar o que é mais forte nas relações sociais dos trabalhadores, que é a permanência no emprego e a criação de uma sociabilidade política que acaba virando movimentos coletivos, é a destruição da identidade dos trabalhadores enquanto classe."

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Para o historiador a terceirização representa "a destruição da identidade dos trabalhadores enquanto classe." Foto: Antonio Scarpinetti/Divulgação

O projeto de lei aprovado por Maia e a base aliada foi criado durante o segundo mandato de FHC. Na época o país também passava por uma crise severa, com índices de desemprego tão alarmantes quanto hoje. Enquanto essa crise, segundo Silva, "prejudicava os movimentos dos trabalhadores", ela também apontava para uma rejeição aos políticos que se alinhassem com o cada vez menos popular governo tucano — no fim das contas, FHC perdeu o apoio até do PFL (hoje DEM), sua principal base. Nas eleições de 2002, a ânsia para se distanciar do governo que se despedia era tamanha que mesmo José Serra (PSDB) tentava se diferenciar do então presidente e amigo próximo, e o PT garantiu, além da vitória de Lula, uma bancada forte, com 91 deputados federais eleitos. Ou seja, não é de se espantar que a terceirização tivesse ficado de fora dos programas de governo desde então.

Já hoje o cenário é diferente. Além de termos o "Congresso mais conservador desde a ditadura", contamos também com um executivo que não foi eleito, muito menos para exercer a plataforma neoliberal da "Ponte para o Futuro" do PMDB. "Me parece que tanto o executivo quanto o legislativo faz o cálculo de que 'não temos muito a perder'. Desde os anos 1930 não estivemos tão próximos de uma diluição dramática de direitos sociais. Isso é uma promessa que vinha desde a golpista UDN, passou pelo golpe de 64, pela ditadura militar, pelo Collor", enumera o professor. Ainda assim, a votação apertada mostra que existem muitos congressistas também de olho nas eleições de 2018. "Realmente, existe também um cálculo político por parte dos deputados — é possível ver isso no fato de muitos deputados de partidos que oficialmente apoiavam a terceirização e que votaram contra ela. Não foi um voto ideológico, mas pragmático", analisa Silva. O próprio Planalto está preocupado com o resultado, uma vez que vai precisar de mais de 300 votos para passar a Reforma da Previdência.

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Para além da perspectiva política, Silva aponta que a terceirização prejudica os trabalhadores em aspectos que tem recebido menos atenção, mas fundamentais, como a segurança do trabalho. "Na construção civil, que é um setor líder em acidentes de trabalho, 80% desses acidentes ocorrem com trabalhadores terceirizados", exemplifica. Outro ponto é que a "segurança jurídica" dada pela nova lei seria uma falácia. "O Brasil é recordista em processos trabalhistas, há alguns anos tínhamos 2 milhões de processos por ano, hoje deve ser algo em torno de 3 milhões. Não é excesso de leis, culpa de uma suposta legislação, que criariam problemas para o empregador, e que por isso ele criaria menos postos de trabalho. O que há é uma evasão por parte do empregador dos direitos trabalhistas e sociais. A terceirização acaba, de certo modo, facilitando o empregador de flexibilizar e até eliminar algumas obrigações trabalhistas. Nos últimos anos, do aumento de processos na Justiça do Trabalho, 30% se devem a processos de terceirização. Ou seja, na medida em que você tem uma terceirização para todos os tipos de atividades, o resultado vai ser uma explosão litigiosa."

"A terceirização acaba, de certo modo, facilitando o empregador de flexibilizar e até eliminar algumas obrigações trabalhistas."

A terceirização, nos moldes da nova lei, não vai apenas afetar trabalhadores da indústria, mas deve ter reflexos entre as chamadas classes "profissionais", em setores como comunicação e educação. Nesses, deve aumentar a chamada "PJtização", que é quando um funcionário é obrigado a abrir uma microempresa da qual é dono para "prestar serviços" para uma empresa maior, maquiando o vínculo empregatício. Além disso, os contratos de trabalho devem se tornar cada vez mais temporários. "Isso já acontece com professores, por exemplo — tem faculdades privadas que contratam o professor de março a junho e depois de agosto a novembro. Com isso você tem uma perda enorme para os professores — perde férias, parte do 13º. Você tem um confisco nos direitos, um confisco no bolso de qualquer trabalhador", pontua Silva.

O professor vê um paralelo concreto entre o que acontece no Brasil hoje e o processo que desarticulou permanentemente a organização dos trabalhadores nos EUA nos anos Reagan. "Existe uma mistificação de que a história das relações de trabalho nos EUA seria sempre baseada num modelo 'voluntarista', sem participação do Estado, mas não é verdade. O Reagan foi o coroamento de um processo de ataque ao New Deal que vinha desde os anos 50, por governos conservadores. Durante a Segunda Guerra os EUA chegaram a usar uma espécie de Justiça do Trabalho, mas você tem uma reação a partir dos governos republicanos. O neoliberalismo cresce depois das crises do petróleo. Esse é o modelo que se pretende aqui, que foi o grande desastre norte-americano — na medida em que a legislação federal tem um impacto menor, quem pode garantir contratos com direitos aos trabalhadores, como seguro saúde? São os trabalhadores sindicalizados. No setor privado norte-americano 4% dos trabalhadores são sindicalizados, e o que vigora é o contrato individual, que significa que é o direito do patrão decidir como serão as relações de trabalho e o salário. O Reagan arrebentou com os aeroviários e fragilizou com isso os sindicatos como um todo. Podemos esperar no futuro fenômenos como o salário por hora, jornada por hora, a perspectiva é o fim do trabalho regular, dos vínculos empregatícios".

Parece que, se seguirmos por esse caminho, férias, 13º salário e outros direitos em breve serão lembranças longínquas de um heroico passado do trabalho no Brasil.

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