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Vice Blog

O Diretor Cutter Hodierne Fala Sobre “Fishing Without Nets”

Visitei o diretor do 'Fishing Without Nets' para falar mais sobre o filme que ele fez contando a história dos piratas somalis.

No longa de estreia do diretor Cutter Hodierne, Fishing Without Nets, produzido pela VICE e Think Media, um pescador somali pobre chamado Abdi (interpretado por Abdikani Muktar) busca desesperadamente um meio de sustentar sua família. As águas próximas de sua casa estão poluídas, o que matou os peixes. Depois de gastar até o último tostão para contrabandear a esposa e o filho para fora do país, Abdi sucumbe à pressão e ao fascínio da pirataria. Com atuações naturalistas nascidas principalmente de improvisação e com um estilo cinematográfico arrebatador, Fishing Without Nets equilibra a emoção de um filme de arte com uma ação que não fica devendo nada aos blockbustersde verão.

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Antes de conhecer Hordierne, no ano passado, no Sundance ShortsLab, eu já tinha ouvido falar dele o suficiente para considerar o cara uma lenda em construção. Para quem não sabe, esse diretor foi batizado em homenagem ao veleiro “cutter”, onde ele passou os primeiros três anos de sua vida. Depois de trabalhar como cinegrafista da estrada numa turnê do U2, ele pegou a grana e fez o curta Fishing Without Nets aos 23 anos de idade. Esse filme levou o grande prêmio do júri no Sundance, e foi aí que a VICE pulou no barco para ajudar Cutter a expandi-lo em um longa-metragem.

Às vésperas do lançamento nacional de seu primeiro filme, visitei Hodierne no ostentoso McCarren Hotel, em Williamsburg, Brooklyn, para falar mais sobre isso. Encontrei o diretor esparramado na cama de sua suíte assistindo à CNN. As polêmicas imagens de Ferguson, Missouri, enchiam a tela, o que levou a conversa numa direção de classe e raça. Ele perguntou se eu tinha visto “o vídeo bizarro dos policiais matando um negro”. Perguntei qual, já que parece haver um monte desses. Enquanto assistíamos a alguns vídeos violentos, ficou claro para mim que Cutter estava tão fascinado pelos policiais como pelas vítimas. Ele voltou um dos vídeos duas vezes para capturar o momento decisivo. Esse deve ser o mesmo tipo de compulsão que o tornou obcecado por piratas somalis depois de ler um artigo de Jeffrey Gettleman no New York Times. Ele via a história dos piratas originalmente como um épico: algo como Traffic, de Steven Soderbergh, ou a série The Wire, de David Simon– ele queria mostrar todos os lados do caso.

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“Eu queria fazer a história dos marinheiros no barco, dos SEALs da marinha, dos donos da companhia de transporte, das pessoas lavando dinheiro no Quênia, das imobiliárias e dos caras que realmente jogam dinheiro no oceano”, ele disse. No final, as pessoas que mais o interessavam eram os piratas. Nas palavras dele: “Quem faria uma coisa dessas? Quem seria tão louco para capturar um navio?”.

Apesar de Fishing Without Nets ser uma condensação de sua visão inicial, o filme ainda é um microcosmo das complexidades culturais e emocionais da Somália hoje e faz-se digno de atenção porque é uma produção genuína, urgente e nova. Assista a um trecho inédito do filme abaixo e leia o que Cutter tem a dizer sobre o projeto.

VICE: Fishing Without Netscomeçou como um curta ainda em 2012. Você sempre imaginou isso como um longa-metragem?
Cutter Hodierne: Sempre pensei nisso como um longa. Comecei com um curta para explorar a ideia e levantar o dinheiro.

O que te fez querer contar essa história?
Eu queria muito fazer um filme sobre piratas somalis desde 2008. Nunca fui tão obcecado por algo na minha vida antes. Eu queria muito mesmo fazer um filme sobre piratas.

Por que você é tão obcecado por piratas?
Li um artigo no New York Times sobre piratas que tinham capturado um petroleiro ucraniano com equipamento militar. Os piratas eram só garotos. O governo logo viu que eles não eram uma grande organização terrorista com um monte de armas. Eram só um bando de caras jovens que não sabiam muito bem o que estavam fazendo, mas que causaram um grande incidente internacional. Os piratas cagavam na negociação pelo telefone, porque não sabiam o que fazer. E eu pensei: é sobre isso que o filme tem que ser – os caras do outro lado da linha.

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O cara que não sabe o que tem.
…Ou que pensa que tem algo muito maior. Quando fui à África, percebi sobre o que o filme realmente deveria ser: esse equívoco da riqueza. As pessoas tentavam tirar tudo que eu tinha. Eles queriam tirar meu dinheiro e me enganar em todos os aspectos possíveis, o que era hilário. Eu não tinha dinheiro nenhum.

Sim, mas você era algo novo para eles.
Eu vi por que ter os US$ 1.500 para voar para outro país faz isso. Lá, você tem mais dinheiro do que eles já viram na vida. Aí percebemos que poderíamos deixar isso magnífico com um grande navio. Claro que eles pensam que o navio vale milhões de dólares – é um navio enorme. A verdade é que o navio onde filmamos era uma merda. Ele ainda funcionava, mas podia ter saído de operação em um mês. Mas os piratas não sabem disso quando atacam.

Esse equívoco de valor é uma loucura. Os piratas estão tão longe da realidade do transporte marítimo internacional que agem baseados apenas em rumores.
Parte da tripulação do navio foi capturada e mantida por muito tempo. Mas esses caras eram pobres, então ninguém dava a mínima. Eles não são o tipo de gente que chama a atenção da mídia. Alguns reféns foram mantidos na Somália por 24, 36 meses. Um cara acabou de ser libertado algumas semanas atrás, ele ficou lá três anos. É uma loucura.

Tudo é uma concessão. No caso do seu filme, essas concessões parecem nunca seguir o caminho do protagonista.
É assim que vamos anunciar o filme. É uma tristeza.

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Você usou um elenco e uma equipe do mundo todo, incluindo Quênia, Somália, França, EUA e Bélgica. Você notou alguma divisão de classe quando lidava com os atores locais e internacionais?
As diferenças se mostraram de um milhão de maneiras durante a produção do filme. Quando os atores europeus vinham ao set, eles agiam como nós – como ocidentais. Eles não podiam dormir no mesmo tipo de cama que os outros dormiam; eles precisavam de camas especiais. Eles precisavam de mais tempo para fazer tudo. Foi um choque cultural em todos os níveis. Os filmes já são uma hierarquia.

Quais eram as diferenças de abordagem das outras pessoas que trabalharam no filme?
Um das diferenças mais visíveis foi que filmamos no Quênia, e lá os somalis são imigrantes e meio que considerados cidadãos de segunda classe. Havia uma certa xenofobia no set. Às vezes, alguém da equipe queniana ou um dos atores surtava quando um somali dizia alguma coisa sem o grau apropriado de respeito. E eu nunca tinha consciência desses mal-entendidos, porque eles estavam falando uma língua que eu não entendia.

E isso te causou algum problema? Alguma coisa te chocou?
O lugar todo era meio instável. As coisas ficavam caóticas constantemente.

Afinal, vocês estavam num lugar vagamente sem lei, constantemente em navios…
Estar num navio o tempo todo é realmente difícil, porque eu fico enjoado. As pessoas ficavam enjoadas o tempo inteiro.

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Você foi batizado em homenagem a um barco, fez dois filmes sobre navios e ainda fica enjoado no mar?
Eu gosto de contos do mar. Não acho que necessariamente quis fazer esse filme porque ele se passava no mar, mas porque gosto de piratas e eles estão no mar.

Simples assim.
Eu tinha que fazer esse filme. É isso que eu vivo esquecendo. Eu tento intelectualizar por que quis fazer esse filme, mas é muito simples: fiquei fascinado por pirataria de um jeito que nunca fiquei fascinado por nada antes. Minha outra paixão é fazer filmes. Então eu tinha que fazer um filme sobre piratas. É isso.

Fishing Without Nets estreou no Sundance no começo do ano e levou o prêmio de melhor direção do festival. O filme foi lançado pela VICE e Think Media nos EUA no dia 3 de outubro. Se você estiver nos EUA, veja os locais de exibição no site do filme. E não deixe de assistir ao curta original aqui.

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Tradução: Marina Schnoor