Estou deitada numas almofadas em uma tenda meio indígena, com os meus pés perigosamente próximos do sovaco suado de um estranho. Uma asiática-americana usando um terno dourado de lantejoulas e bigode pintado se aproxima de mim com um sino. "Ache a sua piroca interior", ela instrui, e todo mundo explode em gemidos extasiados que parecem saídos de "French Kiss", do Lil Louis. Qualquer serenidade criada por este exercício de respiração é instantaneamente interrompida quando uma caixa de som de um palco próximo começa a mandar um dubstep. Na saída da tenda, um homem adulto usando uma coroa de flores me oferece uma fatia de melancia.Nada disso é fora do normal no Mysteryland, que voltou às colinas verdes do Woodstock de 1969, em Bethel, Nova York, para a sua segunda edição americana, entre os dias 22 e 24 de maio. O festival holandês da ID&T está lutando corajosamente para conseguir a sua fatia do mercado americano, disputando o fim de semana do Memorial Day [o feriado nacional do país que lembra os homens e mulheres que morreram servindo nas Forças Armadas] com o Movement, em Detroit, o EDC, na capital nova-iorquina, o Lightning in a Bottle, na Califórnia, o Sasquatch, em Washington, o CounterPoint Music Festival, na Geórgia, e o Sunset Music Festival, em Tampa. Como resultado dessa quase desonesta competição, os palcos do Mysteryland pareciam mais vazios do que cheios, e muitos dos presentes confessaram o seu alívio com filas mais curtas para usar o banheiro e o espaço maior para dançar. Ainda assim, os organizadores estimam ter recebido um público de 50 mil pessoas - mais do que o dobro do ano passado, de 20 mil. Para continuar crescendo, o festival está maximizando a sua conexão com a cultura hippie de Woodstock, a sua estratégia de branding de maior sucesso até agora.O Mysteryland parece um Burning Man decorada pelo Lewis Carroll, onde o dress code é algo como "cigano futurista". A atenção aos detalhes do festival transparece na sua decoração elegante: as árvores são cheias de lustres, lanternas enormes ladeiam os corredores e cuspidores de fogo sem camisa dançam sob uma tenda que lança bolas de fogo para o céu. Você já sabe que havia coroas de flores à venda.Esse estilo de vida neo-hippie é a cola que une o lineup extremamente diverso do festival, que abrange de tudo, do EDM radiofônico ao hardstyle alemão, passando pelo tech-house europeu — e um set aleatório de 45 minutos do rapper Makonnen. Na sua tentativa de oferecer alguma coisa para todo mundo, o festival me lembra aquelas vezes em que você vai num bufê natural, dá uma exagerada e coloca de tudo no prato — às vezes, o resultado é absolutamente delicioso. Às vezes, simplesmente esquisito.No palco principal, no sábado (23) à noite, o novo set ao vivo do Porter Robinson foi um sucesso, graças aos visuais que faziam referência ao seu disco, Worlds, e à disposição inesperada do DJ em pegar o microfone e, de fato, cantar. Em comparação, o show do Diplo no domingo — o seu primeiro set de encerramento num festival americano — foi irregular, já que ele pulou de um gênero a outro sem mixar quase nada, como se estivesse jogando músicas numa parede para ver o que cola. O número performático que é a assinatura dele, uma competição de twerking no palco entre garotas escolhidas na plateia, fez o sucesso esperado. Uma das garotas escolhidas mais tarde disse, brincando: "Minha bunda estava toda de fora. Meus pais vão ficar orgulhosos".Os palcos secundários eram dominados pela club music europeia. Tem um certo tipo de DJ, normalmente residente em Ibiza, que ocupa o limbo entre o mainstream e o underground que eu adoro chamar de "house mediano". Dois reis dessa cena, Maceo Plex e Richie Hawtin, recompensaram o pessoal que estava acampado, enfrentando temperaturas literalmente congelantes para participar da festa de abertura na noite de sexta-feira. Martin Buttrich, Lee Burridge e os Martinez Brothers transformaram o Verboten e o palco do THUMP, cujo tema era o circo, numa versão em miniatura do clube do Brooklyn. No domingo, o show do selo Drumcode foi uma pancadaria de techno de sangrar o nariz, com Nicole Moudaber roubando a cena e ofuscando o cabeça do selo, Adam Bleyer, e sua esposa, Ida Engberg.Em outro ponto, o palco Boat, mais focado em hip hop e trap, parecia um universo diferente — um universo em que o Bro Safari é rei, o Doctor P, um convidado de honra, a moeda corrente são canetas para esculpir em cera… E o Makonnen é um invasor alienígena. O rapper usava uma bandana que cobria a maior parte do seu rosto e foi ofuscado por um palco projetado para DJs, não para shows ao vivo. Makonnen tocou seus hits em velocidade recorde e encerrou cedo o seu set. Perto do fim, ele refletia a falta de energia do público, e a certa altura chegou mesmo a chamar a sua atenção: "Toquei há pouco no CounterPoint, e eles fizeram mais barulho do que vocês."Cansaço à parte, o único palco que deixa um gosto particularmente amargo é o Sin Salida, organizado pelo grupo teatral homônimo, dos Países Baixos, que excursiona com o Mysteryland. Ouvi falar deles pela primeira vez através de outro frequentador do festival, que me perguntou baixinho se eu tinha visto o "palco asiático". O site do festival o descreve assim: "Entre numa terra japonesa cheia de gueixas, saquê e talvez até mesmo algumas carpas". O que isso realmente significa: uma celebração de estereótipos orientalistas de dar vergonha. Ok, o tema do palco, na verdade, é "Owari No Nai"("sem saída" em japonês), mas quando estive lá, tudo que vi foi gente branca dançando de quimono e maquiagem de gueixa, rodopiando guarda-chuvas e imitando a risada dos japoneses, cobrindo a boca com as mãos. Estranhamente, sou a única pessoa asiática no mar de rostos caucasianos felizes — isso sem mencionar a falta de artistas asiáticos no lineup. Esse era o DJ:Tirando alguns tropeços, o segundo ano do Mysteryland sugere que o festival será um adversário combativo no ringue dos festivais de dance music e o evento conta com um círculo de promoters consagrados de Nova York, como Verboten, BangOn! e Webster Hall no seu corner. Ainda assim, o que torna esse festival especial não são as sessões de yoga ao som de deep house, o exotismo casual dos nativo-americanos e da cultura asiática, ou os palestrantes motivacionais dizendo coisas como "a vida é uma jarra, então abra a jarra". (Na verdade, é legal apesar de tudo isso.)O que realmente faz o Mysteryland se destacar dos seus competidores é a maneira como a comunidade local o acolheu. A sua mente aberta penetrou a cultura do festival em todos os aspectos. Casais grisalhos usando camisetas tie-dye fazem sinais de paz e amor quando você passa de carro, os taxistas te lembram de colocar um casaco e os seguranças contam piadas de tiozão enquanto você espera na fila. (No ano passado, uma mulher que mora perto do acampamento chegou a me oferecer a casa dela para dormir.) Perguntado se a música até as 2h da manhã era um incômodo, um morador próximo respondeu: "De jeito nenhum! É como um show de graça no meu quintal!"Esse é o tipo de atitude que não cresce em coroas de flores artesanais.Michelle Lhooq é editora assistente do THUMP e está no Twitter.Tradução: Fernanda Botta
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