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Feminismo

Um dia no acampamento onde é liberado xingar e assediar homens

O exercício obrigava os caras a não responder e, depois, ouvir histórias de abuso e estupro sofridos pelas meninas.
Ilustração por Nico Teitel.

Mexe essa bundinha aí."

Meu dá seu telefone, vai.”

Sorria, vagabundo.”

Essas eram algumas das frases abusivas que ouvi mulheres jovens, entre 15 e 18 anos, gritarem no agora extinto Acampamento Brotherhood-Sisterhood nas montanhas perto de Los Angeles. O exercício se chamava Manopla, e participei dele com um grupo diverso de adolescentes, incluindo membros de gangues, alunos de escola particular e nerds do teatro. Quase 100 garotas ficavam em duas fileiras de frente uma pra outra, criando um corredor por onde os garotos, um por um, tinham que passar.

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Durante essas práticas, todas as garotas gritavam, sussurravam, xingavam e humilhavam os garotos. Era um tsunami de flertes falsos e raiva real. Não podíamos tocar nos caras, mas as garotas pulavam no meio do corredor e diziam essas coisas na cara deles. Os homens não podiam dizer nada. Depois, os garotos se sentavam em silêncio e ouviam as histórias que as garotas compartilhavam sobre assédio, abuso e estupro. Depois que meninos e meninas se separavam para discutir entre si, os dois gêneros se reuniam para uma discussão em grupo.

Esse exercício pode parecer brutal, mas visava fazer homens jovens entenderem assédios e microagressões que mulheres suportam todos os dias, para os sensibilizar sobre as nuances da dor, construir empatia, e no final, mudar seus comportamentos.

Numa cidade tão grande, estratificada e segregada como LA, o Acampamento Brotherhood-Sisterhood juntava pessoas de várias origens. Desde sua concepção nos anos 50 até seu fechamento em 2004, seu objetivo era levar a interrogações profundas não só sobre sexismo, mas sobre racismo, antissemitismo, classicismo e homofobia. Era um esforço para criar um diálogo que pudesse “construir uma comunidade multicultural, multirracial e inter-religiosa”.

A premissa era a seguinte: para desmantelar o preconceito e a intolerância, cada um de nós tinha que examinar seus preconceitos cara a cara. Tínhamos que reconhecer que todo mundo discrimina, que todo mundo tem estereótipos não importando quão iluminado você se ache. Não tem como não crescer nos EUA como uma pessoa branca e não ser racista em certo grau, não tem como nascer homem e não ser machista. Admitir nossos preconceitos, os questionar e encarar é o único jeito de realmente dissipá-los.

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Muitos de nós se inscreveram no acampamento achando que seria só uma semana divertida na mata. Em vez disso, levamos um tapa na cara. Mas a equipe altamente treinada era especialista em nos desconstruir e construir de novo. Apesar de a semana ter sido realmente brutal, também foi transformativa e rendeu algumas das amizades mais honestas e duradouras que muitos de nós tiveram.

O acampamento era dirigido pela Conferência Nacional de Cristãos e Judeus, uma organização formada nos anos 20 em torno de inclusão religiosa, mas que logo passou a englobar relações humanas e justiça social de maneira mais ampla (e mudar seu nome nos anos 90 para Confederação Nacional de Comunidade e Justiça). O acampamento estava longe de ser mais um experimento hippie da Califórnia.

Quando mulheres começaram a falar publicamente sobre assédio e abuso ano passado, fiquei imaginando se o movimento #MeToo realmente está mudando atitudes e comportamentos diários dos homens, ou se agora eles só estão com medo de serem pegos. Isso me fez pensar sobre o acampamento, as transformações reais de perspectiva que ele inspirou, e como táticas experimentais como a Manopla podem mudar o entendimento dos homens sobre sexismo mais profundamente que uma hashtag e outros ativismos de sofá. Sei que a maioria das pessoas não têm acesso a acampamentos como esse, mas há um caso aqui para mais gente investir em treinamentos assim, para encorajar empatia que pode levar a mudanças.

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Abordei alguns homens ligados ao acampamento (acampantes, líderes jovens, funcionários e diretores) para perguntar sobre suas experiências com a Manopla. Eles descreveram o exercício como intenso, pesado, confuso e até perturbador. Alguns passaram pelo corredor rápido e de cabeça baixa. Outros ficaram com raiva e defensivos. Alguns choraram.

As reações muitas vezes mudavam durante a caminhada, como Rodney Lazar, 46 anos – que participou do acampamento entre 1987 e 1991, e que agora trabalha com finanças –, explicou: “Meu primeiro instinto foi rir. Uma mulher me dizendo 'Bela bunda', é engraçado. Mas conforme eu andava, isso foi se tornando doloroso, sombrio e desconfortável. Eu era apenas um corpo: sou uma bunda, um peito, não sou mais o Rodney”.

Outro homem, Daniel Solis y Martinez, 35, que participou do acampamento entre 1999 e 2004 e agora é diretor executivo da Conferência da Califórnia por Igualdade e Justiça, disse: “Meu medo da Manopla rapidamente se transformou em vergonha – vendo a dor, a raiva e a tristeza de mulheres com quem fiz amizade naquela semana, e saber que eu era parte daquilo”.

Ser colocado no lugar de uma mulher, mesmo que temporariamente, teve um impacto profundo. Lazar disse: “Isso me deu um vislumbre de como é ter seu espaço pessoal invadido, ser verbalmente atacado, marginalizado, feito se sentir um pedaço de carne, e não ter controle – algo com que as mulheres lidam todo dia”.

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Mesmo assim, lembro que alguns caras claramente não acharam a mesma coisa. Certos garotos desfilaram pelo corredor, levantando a camisa e esfregando o peito. Apesar desse pavoneamento poder ser explicado como um mecanismo de defesa, também pode ter sido porque eles gostaram da atenção. Falei com alguns especialistas, sem ligação com o acampamento, para saber suas perspectivas sobre a Manopla.

Retratos de mulheres com acne

A Dra. Kate Manne, filósofa feminista da Cornell, explicou: “Homens muitas vezes têm dificuldade para entender por que as mulheres não gostam de ser cantadas ou mesmo elogiadas”. Eles não veem isso como algo tão degradante, ou como a expressão de atração de um homem pode ser inseparável do medo de uma mulher de sofrer violência.

O Dr. Paul Bloom, psicólogo de Yale que é crítico da empatia e argumenta que esse é um guia precário para tomadas de decisão morais, disse que um exercício como a Manopla pode até aumentar o desprezo de um homem pelas mulheres, por exemplo se o cara pensa Gosto da atenção, então as mulheres também deviam gostar; eu responderia se alguém me chamasse de vagabundo, então as mulheres também deviam, e se não respondem, a culpa é delas.

Os acampantes homens com quem falei concordaram que só entenderam realmente a importância da Manopla quando se sentaram para “ouvir as histórias das mulheres sobre como cantadas se conectavam diretamente a incidentes reais de assédio e abuso”.

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A Dra. Julie Anderson, uma psicoterapeuta de LA especializada em gênero e sexualidade, explicou por que essa parte – ouvir – é importante: “Isso foca nas experiências das mulheres da perspectiva e contexto delas, não nas crenças e perspectivas dos homens”.

Mas ouvir as mulheres não é fácil. Isso obrigou aqueles adolescentes a confrontar os poderes e privilégios que eles não percebiam que tinham: “As mulheres estavam no comando, gritando pra gente o que fazer, e percebi como eu achava normal os homens estarem sempre no comando. Essa virada de mesa foi chocante, desconcertante”, disse Mike Chavez, agora com 49 anos e especialista em comunicação de um sindicato de profissionais de saúde.

Machismo que adoece

Matthew Gibson, que foi acampante e líder jovem, disse: “Eu estava muito consciente da minha falta de poder na sociedade como um jovem negro. O que nunca me ocorreu foi minha posição de poder como homem. Isso foi realmente um choque”.

Homens gays como Solis y Martinez, que achavam que não eram cúmplices do sexismo, foram obrigados a encarar como ainda tinham poder e sexualizavam as mulheres (reforçando padrões de beleza, por exemplo), mesmo não tendo interesse sexual nelas.

No acampamento, testemunhei esse execício onde o mundo dos homens jovens era virado de cabeça para baixo. Mas isso continuou com eles? Isso mudou o comportamento deles depois do acampamento? Chavez disse que acabou se afastando de alguns amigos do colégio porque “estava constantemente questionando eles sobre chamar meninas de 'vadias'". Ele enfatiza: "Antes do acampamento eu era um sexista típico, então foi uma transformação e tanto”.

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Outro acampante, um jogador de futebol, se levantou em sua primeira reunião da fraternidade na faculdade e disse para seus 50 “irmãos” que eles deviam respeitar as mulheres e não se referir aos gays como “bichas”, e por quê. Ele ouviu piadas, mas continuou defendendo isso até que os outros começaram a ouvir. Isso exemplifica o que Anderson descreve como o jeito mais eficiente de fazer os homens mudarem positivamente suas atitudes e comportamentos para com as mulheres – ouvindo outros homens falarem sobre sexismo e por que isso é errado.

Os homens jovens que participaram do acampamento experimentaram um jeito mais poderoso de entender o sexismo do que ler um livro ou assistir um vídeo. Tanto Anderson quanto Manne confirmaram a importância do aprendizado visceral e sua ligação com uma mudança de comportamento. Anderson falou: “Uma catarse integrada (física, emocional e intelectual) pode começar a mudar comportamentos que não eram bons para você”. Manne explicou que o experimento “pode ter um papel-chave para equipar pessoas para colocar valores morais em ação”.

Então o que exercícios como a Manopla sugerem para o movimento #MeToo? Uma hashtag não pode comunicar a experiência de ser assediado. Talvez experiência seja o que é preciso. Segundo Manne: “As pessoas racionalizam moralmente suas ações para evitar se verem como misóginos, hipócritas ou assediadores”. Experiências viscerais pode ajudar a combater isso, ela disse, mas as pessoas também têm que aceitar que estão perpetuando ações injustas e não retroceder para a negação, desculpas ou culpar a vítima. “Eles também têm que estar dispostos a encarar sua vergonha.”

E o acampamento era muito bom em encorajar as pessoas a encarar sua vergonha. Enquanto o #MeToo vai numa direção punitiva, rejeitando “homens maus” – como deveria mesmo –, o acampamento apontava o comportamento tóxico dos caras, mas também os ajudava a trabalhar nisso. Havia espaço para redenção. Não dada, mas conquistada com trabalho duro. E não era responsabilidade das mulheres fazer o trabalho, por isso os garotos se reuniam antes só entre eles.

Para muitos caras, o acampamento começou um processo difícil de autorreflexão para desconectar sua masculinidade do comportamento machista – não só passando cantadas, mas fazendo mansplaining, tomando espaço e dominando conversas. Mas desaprender o sexismo é um processo para a vida toda. Eles ainda lutam com isso, mesmo décadas depois, conscientes, como Chavez diz, “de todas as maneiras como ainda fracasso como feminista”.

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