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A seita racista e homofóbica que é dona de vários restaurantes nos EUA

A Twelve Tribes não anuncia suas crenças no cardápio.
Todas as fotos pelo autor.

Seitas sempre manjaram como ganhar dinheiro. No geral, elas fazem isso obrigando os membros a entregar seu dinheiro e todas as suas posses mundanas. Mas alguns grupos vão mais longe. O FLDS tinha esquemas com vales alimentação. O Templo do Povo vendia lembranças. Os membros do Heaven's Gate faziam sites.

Mas uma seita, a Twelve Tribes (que, aliás, rejeita o rótulo de “seita”) tem uma fonte relativamente simples de renda extra: o grupo é dono de cerca de 20 restaurantes. Os estabelecimentos, conhecidos por vários nomes, funcionam em diversos locais dos EUA, Reino Unido, Canadá, Espanha e Austrália. Como seus restaurantes, a organização está espalhada pelo mundo. Os membros vivem comunitariamente em fazendas e evitam muitos dos luxos do mundo moderno, como TVs, rádio e jornais. A Twelve Tribes se identifica como cristão, mas aprova práticas hediondas como segregação (eles dizem que multiculturalismo simplesmente “não é razoável”), misoginia (eles acreditam que as mulheres foram “criadas para completar o homem”), e tratamentos bastante questionáveis para crianças (eles estão no centro de polêmicas relacionadas com punição física e trabalho infantil).

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Mas eu não sabia nada disso quando decidi passar um dia trabalhando remotamente de dois restaurantes Twelve Tribes perto da minha casa, os dois no Condado de San Diego. Decidi não ler nada sobre eles antes de visitar, para poder experimentá-los pelos olhos de um cliente normal, e me abrir para qualquer doutrinamento que eles pudessem tentar.

Tudo que eu sabia sobre a Twelve Tribes naquele ponto é que eles eram meio amish e tinham se envolvido em algum tipo de escândalo sobre trabalho infantil, e também alguma coisa sobre racismo no passado que agora os membros não brancos diziam não ser mais problema. Mas todos os detalhes que eu tinha na minha cabeça eram vagos.

O primeiro restaurante que visitei era numa cidadezinha chamada Valley Center, 160 quilômetros ao sul de Los Angeles.

Era um lugar bonito de um jeito que eu não esperava ver nessa parte da Califórnia. Para chegar ao restaurante, dirigi por quilômetros de estradas beirando cânions, campos verdejantes, rebanhos de vacas e riachos que literalmente murmuravam. Quando cheguei ao restaurante, o lugar também era incrível. Parecia Os Pioneiros pintados por Thomas Kinkade.

A vibe do lugar era exatamente o que você pensaria se alguém te pedisse para imaginar um restaurante de uma seita: vegetais orgânicos, cabelos compridos, cookies veganos, pinturas psicodélicas, chás de ervas e uma seleção de produtos de beleza caseiros. Tinha também um forno antigo, muito couro e madeira de demolição. Ouvi dois clientes compararem o lugar ao Condado dos hobbits.

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Os funcionários também eram o que você esperaria: pessoas bonitas de cabelo brilhante e comprido com rostos sorridentes. A coisa era muito “os rajneeshees antes do escândalo da salmonela e mendigos viciados”. Era quase muito na cara. Como um esquete sobre seita em algum canal de humor tipo Porta dos Fundos.

Pedi um hambúrguer vegetariano, um café e um suco de toranja. Tudo estava quase inacreditavelmente gostoso. Foi um dos melhores hambúrgueres vegetarianos que já comi.

O segundo restaurante que visitei ficava a 24 quilômetros dali, em Vista. Era mais do mesmo, só que maior, localizado numa área urbana, e as pessoas trabalhando lá se comunicavam com aqueles walkie talkies de orelha como os vilões de Matrix.

Os dois lugares estavam bem cheios, com um público típico do meio da semana. Alguns policiais, algumas reuniões, algumas pessoas que pareciam parte de um grupo de igreja. Exatamente o tipo de vibe que você esperaria de um restaurante relativamente popular que não pertencesse a uma seita.

Eu esperava ser bombardeado pelas crenças deles, mas os dois restaurantes não pareciam querer me fazer uma lavagem cerebral. Havia alguns panfletos e jornais grátis da Twelve Tribes espalhados em cada estabelecimento, mas eram fáceis de ignorar como filipetas de shows, de gatos perdidos ou qualquer coisa do tipo que você encontra num café normal.

Nas oito horas que passei entre os dois restaurantes, os funcionários não mencionaram suas crenças sem que alguém perguntasse.

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Eu estava tão desesperado para sofrer nem que fosse uma leve lavagem cerebral que até tentei instigar uma em certo momento. O cardápio dos dois restaurantes tinha uma nota na frente dizendo “servimos o fruto do espírito… Por que não pedir?” Então eu pedi.

“É… hum… porque também somos uma comunidade, não servimos apenas comida? Servimos o espírito?”, disse meu atendente antes de se retirar um tanto confuso.

Panfletos da Twelve Tribes no restaurante de Vista.

Aí decidi ler alguns dos materiais que eles tinham disponíveis.

Por meio deles, descobri que o objetivo das comunidades Twelve Tribes é recriar a igreja como descrita no Livro de Atos. Eles gostam de amor, crianças, compartilhar e união, segundo a literatura deles. Eles não gostam de tecnologia, egoísmo, drogas e serem chamados de seita (que eles descrevem como “algo parecido com os tribunais de bruxas de Salém”).

As páginas estavam cheias de gente sorridente de várias raças empurrando carrinhos com maçãs, alimentando filhotes de cabra e dançando de mãos dadas na natureza. E mantendo a estética de seita hippie dos anos 70, tinha até referências a Grateful Dead, Timothy Leary, Joan Baez e Haight-Ashbury.

Baseado no que vi lá, minha impressão geral era que essa é uma seita bem sossegada, que eu não hesitaria em entrar se estivesse procurando uma. Além disso, a ideologia deles rende um hambúrguer vegetariano fantástico.

Mas aí fui pra casa e dei um Google neles.

E parece que as coisas que eles anunciam em seus panfletos não são bem assim.

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A atitude deles com raça é bem mais extrema do que eles deixam transparecer – uma dica é que eles têm a pergunta “vocês são racistas?” na seção FAQ do site deles.

“A realidade é que pessoas negras têm posições de responsabilidade em cada aspecto das nossas comunidades”, diz a resposta. “Há anciões negros, apóstolos negros, líderes de casa negros, professores negros, além de brancos. Raça não é, nem nunca foi, um problema no Twelve Tribes.”

O que é meio estranho considerando outra seção do site deles. Como a parte onde eles explicam que são pró-segregação porque “multiculturalismo aumenta assassinatos, crimes e preconceitos”. Ou a parte onde eles dizem que políticos que “consideram diferentes raças como uma são os precursores do anticristo”.

As mulheres não são vistas sob uma luz muito mais positiva que a mistura de raças. Elas devem se submeter à autoridade dos membros homens da comunidade e não devem “dizer não para as necessidades físicas do marido”. O feminismo, acredita o Twelve Tribes, leva ao adultério e à homossexualidade, e as mulheres devem continuar com seus maridos mesmo se sofrerem abuso físico.

Em 2013, um jornalista do canal alemão RTL entrou disfarçado num grupo do Twelve Tribes na Baviera. Ele contou que as crianças eram acordadas às 5 da manhã para uma hora de preces e obrigadas a passar o dia fazendo trabalhos braçais na fazenda. Ele juntou 50 vídeos de crianças apanhando. “É normal apanhar todo dia”, disse um ex-membro da Twelve Tribes a ele.

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Um jornalista que se infiltrou num grupo da Twelve Tribes em Winnipeg, Canadá, um ano depois, não viu nenhuma criança apanhando, mas relatou ter visto 20 varas pela propriedade que ele acreditava serem usadas para punir crianças.

“Sabemos que alguns consideram esse aspecto da nossa vida controverso”, o grupo escreve sobre punição física no site. “Mas vimos por experiência que disciplina impede as crianças de serem mal criadas e desrespeitarem autoridade.”

E, sem grande surpresa, eles também não curtem gays. No site, eles chamam a homossexualidade de “o grande mal” e dizem que isso “só leva à tristeza e destruição”. Eles também comparam gays a cachorros, escrevendo que “cão” é “o único nome com que pessoas justas em Deus podem chamar gente assim, que se degradam ao nível da criatura mais baixa, o cão”. O que me pareceu desnecessariamente maldoso tanto com os gays quanto com os cachorros.

E você também não vai ficar surpreso em saber que eles são contra o aborto. E provavelmente só um pouco surpreso em ouvir que eles são contra anticoncepcionais, divórcio e não permitem que seus membros tenham TVs, rádios ou jornais. Mas você pode ficar um pouco mais surpreso em saber que eles se opõem a crianças brincarem, cabelo curto em mulheres e tomar analgésicos durante o parto.

Depois de passar um dia inteiro nos estabelecimentos deles, não me deparei com nada disso. Não só a coisa sobre abuso infantil que o grupo obviamente não quer espalhar, mas as crenças centrais da Twelve Tribes sobre sexualidade, mulheres e minorias. Fiquei imaginando se havia um esforço consciente para esconder essas crenças dos clientes.

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Liguei para o Yellow Deli em Vista e fiz essa pergunta para um dos funcionários, um homem que se identificou como Jacob Franks. Ele me disse que, mesmo sabendo que algumas pessoas acham as crenças da Twelve Tribes questionáveis, eles não estão tentando escondê-las.

“Acho que vivemos e falamos abertamente sobre o que acreditamos”, ele disse. “Quanto ao que tenho em meu coração, e o que entendo, é que amamos todas as pessoas. Todos os seres humanos. Não importa quem eles são ou o que fizeram. Somos livres para expressar o que temos em nossos corações se um cliente vem e pergunta especificamente o que sentimos e no que acreditamos.”

Ele também me disse que o dinheiro que o restaurante faz financia o Twelve Tribes e as atividades deles.

E isso não caiu bem pra mim. Acho que se você quer comer um hambúrguer vegetariano gostoso e também financiar homofobia, segregação, abuso infantil e subjugação de mulheres, então eu recomendaria esses caras. Quem não quiser pode ir pro Cheesecake Factory. O hambúrguer vegetariano deles é melhor do que você pensa.

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