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A Prostituição É o Último Desafio a Ser Superado no "Paraíso Trans"

Ainda que a Argentina tenha a primeira escola transgênero do mundo, alguns obstáculos ainda precisam ser superados: a grande maioria das jovens trans acaba trabalhando como prostitutas.

Estudantes da Mocha Celis em Buenos Aires, uma escola para pessoas trans.

Hoje, a Argentina é o único país do mundo onde você pode mudar legalmente o gênero de sua identidade sem qualquer atestado médico, cirurgia ou tratamento de hormônios. E graças à Lei de Identidade de Gênero de 2012, se você decidir que quer a cirurgia ou o tratamento hormonal, o sistema de saúde público cobre os custos.

O país também tem a primeira escola transgênero do mundo e, zapeando pelos canais de TV durante a tarde você vai cruzar com La Pelu, um programa de fofocas apresentado por Flor de la V, uma mulher trans e mãe de dois filhos muito popular na Argentina. Em relação a países com uma visão de mundo mais atrasada, como Irã e EUA, a Argentina é um paraíso trans moderno.

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No entanto, alguns obstáculos ainda precisam ser superados: a grande maioria das jovens trans acaba trabalhando como prostitutas – uma vida que, em Buenos Aires e em outras grandes cidades do mundo, inevitavelmente envolve violência, assédio da polícia e doenças. E, apesar de a legislação ter uma das abordagens mais progressistas do mundo em direitos trans, vai ser difícil trazer uma comunidade marginalizada para a cultura predominante se as estruturas ao redor continuam empurrando-a de volta.

Durante a ditadura – de 1979 a 1982 – estima-se que 30 mil pessoas desapareceram na Argentina, incluindo travestis, transexuais e pessoas transgêneros; pessoas que foram presas, estupradas e até assassinadas por não se conformarem às normas de seu sexo de nascimento. Mas nos últimos 30 anos, grupos ativistas trans, indivíduos e o governo de esquerda no poder vêm lutando para fazer avançar os direitos para as comunidades trans e gay da Argentina.

Antes da Lei de Identidade de Gênero de 2012, essa luta levou o país a ser o primeiro da América Latina a aprovar a legalização de casamento gay. Isso em 2010, quatro anos antes de o Reino Unido decidir que tudo bem se pessoas do mesmo sexo quisessem fazer seus votos numa igreja e não em um cartório.

Juliana Di Tullio (esquerda) e a presidente da Argentina, Cristina Kirchner (direita), em 2013. (Foto via.)

Juliana Di Tullio, deputada e Presidente do Congresso pelo Partido Justicialista, foi coautora tanto da lei do casamento gay como da lei de identidade de gênero. “Foi muito difícil aprovar o casamento gay”, ela me disse, “mas a lei da identidade de gênero foi aprovada sem nenhum debate no congresso – foi unânime. Mesmo quem votou contra a lei do casamento gay em 2010 foi a favor da lei de identidade transgênero”.

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A secretária de Juliana é uma peruana trans chamada Cristina Idania Rengifo Pinchi. Acredita-se que ela seja a primeira pessoa trans a trabalhar para um governo federal no mundo, e também foi a primeira pessoa a mudar oficialmente o gênero em seu documento de identidade, apesar de não ser nativa da Argentina. “Esse é o único país onde, como estrangeira, pude mudar meu gênero em meu documento de identidade”, ela disse. “Ninguém no mundo pode mudar sua identidade em outro país, como estrangeiro. Depois de mudar o meu aqui, também mudei minha nacionalidade para argentina.”

Cristina acredita que os direitos para gays e trans na Argentina são resultado da determinação e da atitude pró-ativa da comunidade. “Buenos Aires é um paraíso para a comunidade trans”, ela me disse. “Mas a diferença entre a Argentina e o resto do mundo é que aqui as pessoas trans lutaram muito por seus direitos. Somos protagonistas de nossa situação, somos donos de nossa própria luta.”

Cristina Idania Rengifo Pinchi (centro).

Cristina tem cerca de 1,60 metros, mãos e pés bem menores que os de muitas mulheres que conheço. Por fora, pelo menos, ela parece muito mais feminina do que eu. No entanto, dentro da comunidade trans, a aparência feminina de Cristina foi motivo de isolamento. “Sou considerada mais feminina porque sou pequena”, ela explica. “Tive algumas dificuldades na comunidade porque algumas pessoas trans são bem maiores, mais altas e masculinas. Elas brigavam comigo e diziam: 'Ah, é fácil pra você – você parece mulher'. Eu entendo isso, mas sempre digo: 'Eu também escolhi essa vida como você'.”

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Cristina tem consciência de que tem mais sorte do que a maioria; ela vem de uma família peruana rica e, como seu pai tem status na comunidade, ela experimentou menos discriminação do que outras pessoas trans. Agora, segundo ela, seu trabalho no alto escalão do governo e sua aparência ajudaram a atrair uma atenção incomum: “Recebi muitos presentes de políticos conhecidos, atores e celebridades, tentando me cortejar”, ela disse.

Mas a vasta maioria da comunidade trans argentina não tem tudo tão fácil. Muitas pessoas são expulsas de casa e acabam nas ruas. “Cem por cento dos transgêneros e transsexuais já trabalharam na prostituição, e estão sujeitos à violência dos clientes e da polícia”, disse Juliana. “Por causa da prostituição, elas contraem doenças sexualmente transmissíveis e, com isso, a expectativa de vida delas cai muito. Cinco anos atrás, a expectativa de vida para pessoas transgênero [na Argentina] era de 37 anos.”

Foi por causa dessa estatística que Juliana resolveu pressionar a ONU para abordar o problema. “Até 2005, nenhum dos departamentos da ONU – nem o departamento de direitos humanos nem o de gênero – consideravam os problemas que os transgêneros e transexuais encaram”, ela disse. “A ONU sempre aconselha os países sobre como lidar com seus problemas sociais. Meu trabalho foi pressioná-los para levar os problemas dos transgêneros e transexuais a sério e, em 2005 – depois de ir à embaixada com uma mulher transgênero, e por causa da baixa expectativa de vida – a ONU recomendou que todo país trate isso como um problema sério e tome medidas para ajudar.”

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A apresentadora argentina Flor de la V. (Foto via.)

Independente das medidas tomadas pela ONU, a indústria da prostituição trans na Argentina prospera e a demanda por prostitutas trans é alta. “As filas de carro vão e vem”, disse Cristina. “As mesmas pessoas que discriminam as trans no dia a dia são aquelas fazendo fila nos parques à noite.”

O grupo ativista trans ATTTA (Associação de Travestis, Transexuais e Transgêneros da Argentina) pressiona Juliana e o governo para que ele reconheça a prostituição como um trabalho oficial para os trans, mas isso é sempre negado. Como Cristina explicou: “O governo quer apagar a prostituição por meio da inclusão social. Então a ATTTA procura Juliana para pedir pelo registro da prostituição como emprego legal para as pessoas trans, e ela se recusa porque quer que as pessoas trans tenham oportunidades e educação, e não tenham que depender da prostituição”.

Francisco Quinones Cuartas é o fundador da Diversidad Divino Tesoro e diretor da Escola Mocha Celis de Buenos Aires, batizada em homenagem a uma prostituta trans analfabeta que teria sido assediada e assassinada por um policial federal em Buenos Aires nos anos 1990. A escola abriu em 2011, especialmente – mas não exclusivamente –  para pessoas trans acima de 16 anos que queiram se educar e encontrar trabalho legítimo, em vez de tentar a sorte nas ruas.

Estudantes da Mocha Celis.

A escola tem 25 professores, metade deles trans, e 90 estudantes trans e de outras minorias sexuais, além de dois estudantes surdos que frequentam a Mocha Celis porque se sentem mais confortáveis aqui do que em outras instituições educacionais. A estudante mais velha é uma senhora trans de 77 anos que quer estudar filosofia depois de conseguir seu certificado de conclusão do ensino médio.

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Francisco fundou a escola com um amigo como reação direta ao problema da prostituição trans. “O principal objetivo da escola é mudar a realidade da vida das pessoas trans”, ele me disse. “Quando terminei a faculdade, fiz um documentário intitulado Furia Travesti sobre uma cooperativa têxtil chamada Nadia Echazú, dirigida pela incrível Lohana Berkins.

“A empresa treina transexuais e travestis, assim, elas podem evitar o caminho usual da prostituição. Não há estatísticas oficiais, mas em seu livro Cumbia, Capeteo y Lágrimas, Lohana descobriu que 90% das pessoas trans que trabalham como prostitutas querem terminar a escola e conseguir outro trabalho.”

Estudantes da Mocha Celis.

Vítimas frequentes de bullying e discriminação na sala de aula, é comum que trans abandonem a escola cedo. “As escolas não respeitam estudantes que escolheram mudar seus nomes para refletir suas novas identidades”, disse Francisco. “Elas insistem em chamar essas pessoas pelo nome que consta em sua identidade oficial e querem que as estudantes usem o banheiro reservado para seu gênero de nascença. Há casos em que as estudantes têm medo se serem atacadas no banheiro.”

Mas a vida é diferente na Mocha Celis; o Ministério da Educação dá a cada aluna 400 pesos (cerca de R$110) por mês para cobrir transporte e moradia, e um novo programa do governo agora oferece oficinas extracurriculares, como curso de cabeleireiro, costura e administração (a Mocha Celis também oferece às estudantes – muitas das quais ainda trabalham como prostitutas à noite – exames médicos regulares).

Num documento publicado em 2012 pelo Lesbian, Gay, Bisexual and Trans Public Health Outcomes Framework, estatísticas mostraram que, no Reino Unido, um em cada quatro jovens trans experimenta abuso físico na escola e três quartos já se autoflagelaram. Apesar de o sistema argentino não ser perfeito, o governo, a Escola Mocha Celis e vários indivíduos dedicados estão rompendo constantemente as barreiras e atacando a discriminação por meio de políticas e inclusão social. Os direitos trans são prioridade aqui, e a sociedade está mudando como resultado disso.

Agradecimentos a Martina Rodriguez pela tradução.

@sarah_raphael

Tradução: Marina Schnoor