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Alguém avisa pro 'Doc' Antle do 'A Máfia dos Tigres' que ele não é indiano coisa nenhuma

Ele é um exemplo perfeito de como a cultura indiana é apropriada e distorcida. E também um grande babaca.
Ashwin Rodrigues
Brooklyn, US
MS
Traduzido por Marina Schnoor
Bhagavan Doc Antle  A Máfia dos Tigres Netflix Series Tiger King
Screenshot via Netflix

Os indianos de quarentena pelo mundo tiveram um breve momento de união esta semana quando assistiram A Máfia dos Tigres, a série viciante da Netflix que confirma que donos de grandes felinos são um povo muito esquisito. Numa série que tem um enredo baseado num assassinato encomendado, um trisal gay, um caminhão do Walmart cheio de carne podre servido para animais e cuidadores dum zoológico, um pênis com piercing e cadeado, e tantas outras maluquices pra explorar que a gente fica imaginando se a coisa toda não foi pensada para criar conteúdo de spin-off do tamanho do Marvelverso, é dureza se concentrar em apenas um aspecto do programa. Mas é particularmente difícil não se fixar em Bhagavan “Doc” Antle, o mentor do personagem principal da série, Joe Exotic.

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O segundo episódio da série se volta para Antle e seu refúgio de vida selvagem em Myrtle Beach, T.I.G.E.R.S, agora chamado Doc Antle's Myrtle Beach Safari, que parece funcionar como uma seita. Como descrito por Barbara Fisher, ex-funcionária, mulheres que trabalharam para Antle eram mantidas em acomodações estilo estrebaria, obrigadas a mudar seus nomes (geralmente para algo que soasse asiático ou hindu como Ranjnee, Moksha e China), e sofriam pressão para colocar silicone nos seios. Também há evidências de abuso de animais, com Antle sendo suspeito de fazer eutanásia de filhotes que não davam mais lucro como acessórios de fotos (como visto nesse vídeo do Instagram de 2019 mostrando um tigre chamado Casanova).

Nascido na Califórnia de uma família rica que comandava uma fazenda industrial, Mahamayavi Bhagavan “Doc” Antle supostamente ganhou seu nome hindu da mãe, que “tinha muito interesse em filosofia oriental”, como ele disse para a Rolling Stone em 2015. Antle disse que quando criança ele queria ser “algo entre o Rambo e o Dalai Lama”; na verdade, Antle é mais uma mistura do meme gringo Florida Man (ele mora em Myrtle Beach, Carolina do Sul, mas ainda assim) e o tipo de boêmio branco estranhamente obcecado por açafrão, ioga e fingir que a Índia é uma terra mística. Antle antes usava o nome Kevin, como descrito numa matéria de 2001 na Nashville Scene e explicado em seu blog, onde ele diz que usava o nome na escola por “dificuldades em pronunciar seu nome verdadeiro” (e aí eu até entendo, bicho). Ele tem um diploma de medicina chinesa, e por isso se chama de doutor, e espalha seu conhecimento em lugares como LigerLiger.com, onde ele escreveu uma defesa sobre cruzar animais de espécies diferentes chamada “Ligers are Grrrrreat…”. Antle é um exemplo perfeito de como a cultura indiana é apropriada e distorcida, promovendo o ciclo de exotização da Índia e vários arquétipos problemáticos.

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Se você acha que sou só um indiano que ficou ofendido, ouça um profissional: Tem uma história, e até um nome para o fenômeno de alguém que parece o Kevin mas adota um nome do subcontinente indiano. O psiquiatra francês Régis Airault cunhou o termo “Síndrome Indiana” em 2000 no livro Fous de l'Inde, um título que pode ser traduzido por “Loucos pela Índia”. Lembrando a época que serviu no consulado em Bombaim, ele conta sobre colegas franceses perdendo a cabeça no caminho para a espiritualidade, que estavam buscando um “espaço cultural que é puro e exótico, onde valores reais foram preservados”, segundo o Cult Education Institute.

Tem vários exemplos históricos disso: Richard Alpert, o ícone da psicodelia dos anos 60 que fez uma jornada pra Índia e voltou para os EUA como Ram Dass, nome dado por um guru, e, na minha opinião, parecia ser um cara legal mesmo. Mas para cada Dass, tem outro cara branco com um nome hindu novo, participando de coisas como acumular filhotes de tigres e abusar de mulheres sob o disfarce de ser “iluminado”. Outro exemplo é Christophe Sandborn, que mudou seu nome para Mukhande Singh e ficou conhecido por vender água não filtrada ou esterilizada como uma tendência de saúde em 2017.

Nos anos 80, teve a Yogaville, uma comunidade ashram na Virgínia, EUA, fundada por Swami Satchidananda, o guru que abriu Woodstock. Satchidananda abençoou Yogaville jogando água benta no domo de um prédio da porta aberta de um helicóptero, como o Washington Post noticiou em 1986. E por incrível que pareça, Antles aparece nessa história: ele fez um show de mágica na cerimônia de abertura do templo e “e trouxe dois tigres que usou em comerciais da Exxon”, pervertendo ainda mais sua aura “indiana” e fingindo proximidade com a natureza.

Como um indiano assistindo a jornada de Antle em Tiger King, não dá pra se identificar muito com a “indianidade” dele, fora a obsessão em ser chamado de doutor. Pais indianos ficariam chocados com a falta de lição de casa que ele fez: a família dele nem chegou num consenso sobre o que o nome “Bhagavan” quer dizer. Fisher, a ex-funcionária, diz que significa “Senhor”; Antle diz que significa “você é amigo de Deus”; seu filho Kody (que eles chamam de “O Tarzan da Vida Real”) diz que significa “mestre do universo”, um “tipo de cara que sabe tudo, vê tudo”. (Aparentemente, quem chegou mais perto foi Fisher.) Isso significa que a conexão de Antle com a cultura indiana é risível; ele tem um nome indiano, dá novos nomes indianos para seus funcionários brancos possivelmente escravizados; mas as similaridades acabam aqui. (Sendo justo, nunca fui parte de uma seita liderada por um indiano de verdade, e olha que tem muitas.)

Então, enquanto estamos presos em casa pelos próximos meses, possivelmente mudando nossa visão de mundo baseada inteiramente em conteúdo de streaming, só queria lembrar que esse cara é um predador, abusador de animais e fala como se fosse o Kevin Malone do The Office. Mas uma coisa ele com certeza não é: indiano.

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