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Música

Antropologia do Vinil

Viajar pra África Ocidental, norte da América Latina e Caribe procurando discos raros dos seus períodos favoritos na história da música para criar relançamentos lindos que incluem breves contextualizações históricas é um trabalho bem legal.

Viajar pra África Ocidental, norte da América Latina e Caribe procurando discos raros dos seus períodos favoritos na história da música para criar relançamentos lindos que incluem breves contextualizações históricas é um trabalho bem legal. É isso o que o Miles Cleret faz pra ganhar a vida com seu selo Soundway. Nas suas viagens, Miles já documentou culturas inteiras à beira da extinção, assim como histórias inteiras de experimentação musical, one-hit wonders e egos infladíssimos.Miles, porém, insiste em deixar claro o quão chato é 95% do seu trabalho, mas temos certeza que nos outros 5% ele se diverte muito mais do que você consegue em 100% do tempo em seu emprego.

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Vice: Como você transformou o que muita gente considera um hobby obsessivo em viajar o mundo inteiro que trabalha?
Miles Cleret: Cresci em uma casa cheia de discos. Meu pai era um grande colecionador, e eu lembro o quão mágico era descobrir novos álbuns e segurá-los em minhas mãos. A essência desse ato de procurar discos – ou seja lá como você chama isso –, a inspiração vem de procurar músicas para mostrar para pessoas que não as conhecem, e acho que o selo, e tudo o que acontece relacionado a ele, é só uma extensão disso tudo.

Então o que fez você ir disso para o relançamento de eras tão específicas?
As gravações dos períodos que costumamos relançar correm grande risco de desaparecerem por serem negligenciados ou pelo fato das pessoas fazerem vista grossa. Há uma tendência entre as pessoas de pensar que algo feito nos anos 70 nunca estará ameaçado, mas não é bem esse o caso. Alguns desses discos foram prensados em quantidades bem pequenas – às vezes só duas, três ou quatro centenas de cópias – e 95% deles estão por aí em pedaços ou riscados ou, por nunca terem sido vendidos, foram derretidos para a confecção de outros discos. Então há uma grande chance de que esses discos nunca sejam ouvidos de novo, a não ser que alguém os lance ou traga à tona. É um tipo de conservação de áudio, acho eu.

E está funcionando?
Bom, há 15 anos alguns discos eram absolutamente impossíveis de se achar. Eram essas coisinhas pequenas e estranhas que provavelmente acabariam em lojas de segunda mão de Nova York, Londres ou Paris. Hoje eles são mais fáceis de se encontrar, e quanto mais gente se interessa por eles, mais interessado o mercado fica por esse tipo de disco. Vendedores de disco respondem a isso. Quanto mais compilações pessoas como eu fizerem, mais gente que só está nisso por motivos financeiros vai ver oportunidades para vender discos.

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Então basicamente o que você queria era achar e relançar coisas que as pessoas ainda não tivessem.
Com certeza.

Você levou o garimpo de discos à sua conclusão lógica. Algumas pessoas devem se morder quando pensam que você faz isso o dia todo.
Acho que sim, mas sempre há a tendência de romantizar muito. Caçar discos é, na verdade, uma coisa bem chata. Você acaba indo para alguns lugares bem estranhos, alguns até bem perigosos, mas pra ser bem honesto, 95% das vezes é extremamente frustrante. Você passa horas incomodado, passando calor, encharcado de suor e coberto por poeira, dia após dia, muitas vezes com poucas recompensas e várias picadas de mosquito. Mas os outros 5% são realmente divertidos e compensam todo o resto.

O que constitui esses 5%?
Achar bons discos. Acho que é inevitável que haja uma nova geração de pessoas que não dêem a mínima para discos e suas capas. Eles só querem a música. Mas, pra mim, isso conta muito.

Apesar de muitas das cenas e gêneros que você documentou estarem espalhadas pelo mundo, muitas delas parecem ter acontecido mais ou menos na mesma época.
Bom, estamos fazendo uma sobre a Colômbia, que é 70% de anos 80, mas é só olhar os discos que tenho lançado pra perceber que não tem segredo, a música que mais curto foi feita entre 1955 e 1980. Foi uma época muito prolífica – antes de a música virar descartável e de fácil digestão –, mas logo depois disso ela passou a ser controlada por poucos escolhidos. De 55 a 80 muitas projetos pequenos de gravadoras obscuras em estilos diferentes foram lançados, e as pessoas de fato tiveram a chance de experimentar antes que a indústria musical, tecnologia digital, pirataria e fitas cassetes aparecessem e matassem tudo. Se tivesse que ir pra Mongólia procurar por discos dos anos 60 e 70, não teria muita sorte.

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Ir pessoalmente para esses países faz você entender o jeito que a música se movimenta, se entrelaça e vai pra frente e pra trás. África Ocidental, Caribe, norte da América Latina – todos os grandes movimentos musicais do século XX se desenvolveram de uma maneira entrelaçada. Então a música latina tem suas raízes na música africana, mas essa música voltou pra África nos anos 40, 50 e 60, influenciando a música africana, e depois voltou tudo de novo.

Da mesma maneira, a música colombiana dos anos 80 foi influenciada por marinheiros da Nigéria e Gana que traziam discos de volta para a Colômbia para que eles pudessem ser tocados nos sistemas de som de lá. Os jamaicanos fizeram a mesma coisa com os discos de R&B americanos, e apagavam as marcas dos selos pra ver se as pessoas conseguiam notar a diferença. Isso influenciou o ska que, nos anos 70, influenciou bastante a música na Inglaterra. Então a coisa vai e volta.

Como a procura por discos obscuros varia de país para país?
Na América Latina, música antiga ainda é bem viva. Na Colômbia eles tem uma cultura mais forte de pesquisar música velha. Mas em Gana ou Nigéria, muita gente já vendeu tudo, cancelou ou repudia música antiga. Fica só com as pessoas que viviam na época. Se você encontrá-los, algumas vezes têm histórias, mas muitas vezes eles já as esqueceram ou entenderam as histórias errado, ou simplesmente se foram. A verdade existe no disco.

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Mas discos que ninguém mais quer.
Não na Nigéria. Na Colômbia você vai encontrar jovens na casa dos 20 que, como eu, curtem achar discos antigos. Há uma cultura de DJ voraz na Colômbia, especialmente para música africana antiga. Então quando souberam que eu tinha sacos e mais sacos de discos africanos – meu plano era trocar por discos colombianos – fui aliciado. Meu telefone não parava de tocar, as pessoas apareciam no meu hotel e me seguiam pelas ruas.

Existem mesmo tantas lojas, ou pelo menos sebos, pra se vasculhar em lugares como Bogotá?
Praticamente não existe mais nenhuma na África, mas ainda há algumas na Colômbia. Também existem pessoas que vendem discos das suas próprias garagens, e um ou dois colecionadores que vendem coisas que não querem mais. Tem quem monte pequenas lojas nas calçadas. Eu geralmente só apareço no lugar e começo a perguntar pra todo mundo. Uma coisa leva à outra.

Quando você está na caça, prefere achar o artista ou o disco?
O disco. Discos não ligam pra você pedindo dinheiro. Alguns artistas são ótimos, mas alguns são um pé no saco e acham que valem muito mais do que na verdade valem. Por alguma razão as pessoas não conseguem acreditar que você só vai vender uma quantidade X de discos. Eles acham que suas músicas tem que ser vendidas em centenas de cópias e que você deve-lhes dinheiro.

Sir Victor Uwaifo: Guitar Boy Superstar preenche todos os quesitos só pelo nome do álbum. Em qual categoria ele se encaixa?
Ele é um dos poucos que se encaixam na categoria de ser tudo o que eu esperava e até um pouco mais. É um herói nacional – considerado como o verdadeiro mantenedor da cultura de Benin, um verdadeiro embaixador da música highlife, e conseguiu ser um superstar ao mesmo tempo.

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Ele ainda era um superstar quando você o encontrou?
Bom, ele me buscou no aeroporto e levou até sua casa. Ele vive numa casa chamada Superstar Highgate, na Avenida 1 Victor Uwaifo.

Soa bem estrelinha.
O primeiro quarto que você entra é o Hall da Fama Victor Uwaifo. Então você tem esse grande quarto repleto de fotos, memórias, recortes de jornal, discos e violões – até mesmo a bicicleta que ele usava pra ir à escola. Tudo isso num quarto dentro da sua própria casa. Você segue de lá para o quarto História da Nigéria, que é um passeio pela história da Nigéria e seus líderes ao longo dos anos. Seguido pela Câmara dos Horrores.

O que, tipo um parque de diversões?
Não. A gente sentou e assistiu um grupo conhecido de assaltantes armados sendo baleados por um pelotão de fuzilamento. Depois ele me levou até um avião de concreto que ele tinha construído ao lado da casa dele. Era exatamente como estar em um avião de verdade – havia janelas em ambos os lados. Mas na cabine do piloto havia um piano. Ele simplesmente sentou à frente do piano e tocou pra mim enquanto bebíamos cerveja. Não foi um dia normal.

Com certeza um monte de discos que você acha são irrecuperáveis.
Infelizmente sim. Eles geralmente não estão só quebrados, mas a gravação é tão ruim que não dá pra usar. Com a tecnologia de hoje até dá pra tirar o ruído e os riscos, mas não dá pra adicionar nada que não esteja lá. Suas esperanças se depositam no disco.

Então se estiver quebrado você não consegue simplesmente consertar?
É. Você pode tentar ao máximo puxar o que tem ali, mas se não estiver lá não tem jeito. Tem uns discos que eu estou desesperado pra encontrar cópias íntegras por anos, mas nunca consegui.

Como quais?
Tem um 45 do The High Grades chamado Jumping Cat que estou procurando faz uns dez anos. Tenho uma cópia, mas está muito ruim pra fazer qualquer coisa com ela.

Esse é seu Cálice Sagrado?
Um deles.