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Tecnologia

Como Transmitir Mortes em Massa Ao Vivo

O dia em que um canal de televisão russo fez as vezes do submundo da internet, mostrando imagens assustadoras do voo MH17.
Imagens: capturas de tela da Life News

Aviso: Este post contém imagens fortes.

Semana passada, milhares de pessoas assistiram a corpos ensanguentados (alguns deles infantis) queimarem lentamente em um acidente longínquo, por meio do alcance estarrecedor de uma transmissão ao vivo da Rússia. O terreno era uma manta de ruína carbonizada, e cortinas de fumaça cobriam alguns retalhos dos escombros.

Um homem examinava uma pilha de passaportes encardidos. Ele abriu um dos documentos, revelando o rosto angelical de um garoto holandês de 10 anos de idade. A imagem congelou, um círculo cinza apareceu no meio da tela, junto com uma palavra russa que parecia signifcar algo como “carregando”.

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A Life News, agência russa de notícias, estava entre os primeiros a comparecer no local onde outro voo comercial de uma linha aérea malaia havia caído. Centenas de passageiros estavam mortos, a Ucrânia culpou a Rússia, e vice-versa, enquanto uma densa pluma negra trilhava o céu. No início, estavam transmitindo ao vivo, o link estava circulando no Twitter e milhares de pessoas estavam clicando.

E a Life News, uma instituição privada fortemente pró-Rússia, divulgou a carnificina. Ao vivo e a cores. Não havia filtros; as câmeras focavam os destroços, os corpos nus, a onda de fumaça, as chamas contidas (mas perigosas), os membros fraturados, os livros de viagem. Alguém estava prestes a passar as férias em Bali.

Vimos espectadores mórbidos e curiosos, e caça-desastres revirando os destroços, vasculhando o local com mangueiras. Houve relatos de pessoas roubando o local do acidente, mas se roubaram mesmo, foram discretos nos noticiários.

Em pouco tempo, os jornalistas da Life News juntaram os passaportes que haviam encontrado numa pilha, e começaram a folheá-los em frente às câmeras. Passaportes de pessoas, crianças, que horas atrás estavam reclinando suas poltronas no espaço aéreo ucraniano. Talvez tenha sido esse o momento em que tudo pesou demais.

Essa garota está morta agora. A versão sem censuras da transmissão original mostrava seu nome, data de nascimento e uma foto, que foi publicada na Internet minutos após a descoberta. Ela tinha 10 anos. Não era mais jornalismo. Era voyeurismo.

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No fim das contas, encerraram a transmissão e optaram por um formato mais tradicional de noticiário com âncora. O âncora e um especialista convidado teceram comentários à medida que a agência reciclava pedaços da transmissão, e ocultaram as imagens mais sensíveis na reprise. No começo, os corpos não foram censurados. Como uma versão exponencialmente mais sombria da CNN, com sua cobertura do avião malaio anterior, a Life News reprisou a gravação o dia inteiro, sem parar. 
Aviso: mesmo com a censura, são imagens fortes. Destaques da transmissão foram carregados no YouTube:

Esse formato de audiência é comum hoje, claro; a linha entre jornalismo livestream e mainstream é tênue. Acompanhamos o desenrolar do próprio confilito ucraniano por meio de um feed sem filtros. Enquanto isso, os vídeos violentos no LiveLeak, da guerra na Síria, são abundantes e facilmente acessíveis. Mas há algo de excepcional e perturnador no esforço para documentar o avião abatido e a tragédia em massa que o acidente causou, uma transmissão ao vivo dos mortos.

Os livestreams estão cada vez mais populares, pois oferecem ao público uma janela, mostram como é estar em campo durante um evento grandioso. O transmissor é um endereço proxy acessado pelo telespectador, que fica enfurnado no escritório ou no quarto de uma república, acompanhando tudo de um laptop. O Tim Pool, da VICE, popularizou o formato junto com outros jornalistas no Occupy Wall Street. No caso, o interesse foi aguçado porque as pessoas queriam saber como era o empurra-empurra de uma multidão em Nova York, como era o levante contra titãs de Wall Street e policiais nova-iorquinos. Há uma empatia com o conteúdo; é um canal emocional para atos desordenados da vida real.

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Mas a transmissão da Life News foi um registro incessante de cadáveres e calamidade. Não existe empatia com os câmeras neste caso; quem aqui vasculharia uma tumba recente, ao ar livre, e encararia os mortos por horas? Já testemunhei o deserenolar de tragédias pessoalmente, mas nunca permaneci na cena como essas câmeras permaneceram. Tentei ajudar, até falhei, mas não fiquei encarando os mortos como um voyeur à medida que eram descobertos em tempo real.

A distribuição online de imagens de morte já é bem controversa. O Buzzfeed, por exemplo, foi parar no meio da polêmica quando incorporou em sua página o vídeo de um suicído ao vivo que a Fox News acidentalmente havia transmitido. Ainda assim, a existência de um público para tais imagens é inegável, e algumas pessoas acreditam que recusar seu compartilhamento achataria o retrato da realidade por parte dos noticiários. Uma pesquisa da Universidade do Arizona (ASU), de 2010, apontou que jovens americanos achavam que as notícias não deveriam filtrar cenas de morte – e que, durante a guerra do Iraque, voltaram-se em massa para a Al Jazeera, que era muito menos enjoada quanto à divulgação de “imagens cruas” do que redes como a CNN e a MSNBC.

Sem dúvidas, a vontade de ver a verdade pura e sem filtros – sanguinolenta – está incentivando organizações de notícias a forçar os limites de suas coberturas, e a compartilhar os registros ao vivo.

“Audiências mais jovens, especialmente a geração YouTube, procuram imagens fortes de uma forma bem diferente, em comparação ao que as audiências faziam antes da Rede Mundial de Computadores”, disse Shahira Fahmy, autor da pesquisa da ASU, na época. “Isso tem implicações sérias na mídia. Acho que é hora das agências de comunicação emendarem seus códigos de ética para permitir mais imagens fortes, numa tentativa de fornecer uma visão de guerra mais abrangente e realista aos públicos americanos.”

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Agora, mesmo se há algo que não deva ser transmitido ao vivo, provavelmente é muito tarde para essas proclamações sem sentido, já que questões de “deve ou não deve” são consideradas inúteis pela marcha da tecnologia móvel e versátil, que nunca foi tão barata. Ela marchou sobre o trágico acidente no leste da Ucrânia, e manteve nossos monitores a par de cada detalhe. Paralelos à transmissão, surgiram vídeos de YouTube, claro, carregados por cidadãos da região que avistaram a fumaça.

Estamos construindo recriações 3D cada vez mais tangíveis de eventos trágicos, e cada vez mais rápido. Somos capazes de criar réplicas imersivas de ambientes trágicos, onde os telespectadores podem passear; neste caso, um acidente aéreo com centenas de corpos. Temos ferramentas como o Storify, que ajudam as pessoas a editar, compartilhar e acelerar suas reconstruções dos eventos; o futuro das informações sobre desastres em massa está sendo bombardeado por todas essas respostas, tudo de uma vez.

Há quem diga que isso é benéfico, que pode intensificar nossa empatia pelos eventos e pode nos ajudar a compreendê-los e experenciá-los de uma maneira que jamais havia sido possível. Outros dizem que o efeito é justamente o oposto. O New York Times escreveu sobre uma pesquisa feita em 2010, que apontou que a capacidade de empatia dos jovens estava em declínio: “os autores especulam que a mistura de videogames, redes sociais, reality shows e hiper-competitividade deixaram os jovens millennials autocentrados, superficiais e individualistas, com ambições irrestritas.” E um estudo de 2013 concluiu que a exposição à mídia violenta reduzia a capacidade do telespectador de sentir empatia. Essas observações, claro, vivem em conflito.

De qualquer forma, provavelmente temos que ser mais cuidados com as transmissões ao vivo e as experiências imersivas de morte. Retratos detalhados de pessoas recém-falecidas e informações pessoais delicadas foram publicadas com clareza na semana passada, em cenas de revirar o estômago. A sanguinolência da vida real, que costumava rondar as profundezas dos fóruns, agora está prestes a se tornar um dos principais fatores do jornalismo online, a um clique de distância de qualquer usuário do Twitter. Há muitas questões -– e paira uma incerteza sobre quão bem equipados estão os seres humanos para vaguear por lugares de mortes em massa, dia após dia.

Tradução: Stephanie Fernandes