A tourada mais louca da Colômbia

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A tourada mais louca da Colômbia

Dentro de um pequeno vilarejo colombiano, a tradição é encarar – e cutucar – a morte.

Foto: Joseph Swide

O dia é quente, tão quente que nem sinto mais calor — só o suor.

Debaixo do telhado de sapê de um barraco circular localizado numa das extremidades da praça, observamos alguns homens que galopam sem sela pela mesma rua. Em seguida, um caminhão com a carreta coberta passa por nós e toca música no maior volume. Um grupo de criança corre atrás do caminhão. Elas gritam, riem, esperneiam. Viro para um dos habitantes que está ao meu lado e pergunto o porquê da comoção. Ele responde:

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— Toros. No topo de um pequeno morro nos limites da vila, as panelas e frigideiras exalam os cheiros deliciosos da comida caseira dos vendedores que, ocupados, espremem frutas e enchem isopores com cerveja e refrigerante para o início da maior fiesta de Palenque: as touradas. De acordo com o homem que confere os ingressos, o evento acontece todos os anos desde 1930. A tourada, como bem sabemos, é um resquício da colonização espanhola. Mas ali, em uma comunidade afro-colombiana nascida da rejeição de todas as tradições espanholas, uma arena gigantesca de madeira para a prática parecia fora de lugar. Construída do zero em 15 dias, a arena funciona apenas durante esse evento. A construção é magnífica em toda sua estranheza. A imensa sobreposição de pedaços de madeira e barras de metal retorcido dão à estrutura uma aparência ao mesmo tempo antiga e pós-apocalíptica. Imagine uma mistura da primeira arena do filme Gladiador com o Coney Island Cyclone na época de sua abertura, em 1927. Agora imagine essa estrutura surreal sendo construída completamente à mão ao longo de duas semanas em uma vila no interior da Colômbia. É isso. Dado o contexto, a arena é imensa. No andar superior, os lugares premium são vendidos por 5000 pesos (US$2.50) enquanto, no térreo, onde é mais difícil ver a ação, é possível comprar um ingresso por 2000 pesos (US$1). Também há uma terceira opção. Um pacote de risco, por assim dizer: é possível pular o muro e assistir à tourada de perto. E muitos o fazem.

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Postes improvisados de madeira se esticam acima do andar superior. Eles sustentando chapas metálicas que dão um pouco de sombra para aqueles que chegam cedo: velhos, vendedores de cerveja e policiais, todos sentados em banquinhos. Abaixo deles, crianças sentam em tábuas atrás da cerca, lambuzadas de picolé. Dentro do ringue, os homens se reúnem na sombra e jogam conversa fora. Muitos trouxeram pedaços de pau para cutucar os touros. Alguns trouxeram lençóis e cobertores para sacolejar. Outros usam chuteiras. Pergunto para alguém onde está o matador, o torero. "Ele está chegando", responde meu interlocutor. Logo entendi que ele estava brincando.

O clima era bem alegre. Ainda mais se considerarmos que os homens dentro da arenas estavam prestes a encarar a morte. Sim, várias pessoas já morreram nesses festivais. Eu, o homem branco de All-Star e com uma câmera enorme, recebo vários avisos preocupados sobre os perigos de entrar no ringue durante a luta. Como um homem me diz, "esses não são os touros da Espanha". Nesse momento escuto a voz de alguém que eu havia conhecido mais cedo, na praça. Ele está sentado atrás da cerca, numa das cadeiras do térreo. Pergunto se ele acha que eu não deveria estar lá dentro. Ele responde com um sorriso arregalado: — CLARRROOO! Logo após as quatro da tarde, o portão se escancara e o primeiro touro dispara para dentro do ringue.

Foto: Joseph Swide

Quatrocentos anos atrás, muito antes da criação das touradas, um grupo de escravos fugidos liderado pelo lendário Benkos Bioho construiu um palenque — palavra espanhola para quilombo — a fim de utar contra as forças espanholas localizadas em Cartagena. Ao longo do século seguinte, os espanhóis tentaram destruir a vila, mas nunca conseguiram ultrapassar a fortificação de San Basilio ou seu território inóspito. Hoje a vila fica a uma hora de ônibus de Cartagena, seguida por cinco quilômetros de viagem na garupa de uma moto em uma estrada semi-pavimentada. No século 17, os espanhóis passavam dias atravessando matas fechadas e pântanos para chegar até aqui. Assim, finalmente derrotado, o Rei da Espanha assinou uma ordem real em 1714 que reconhecia oficialmente a autonomia do "Palenque de San Basilio". Tornou-se a primeira cidade livre das Américas. Quando o governo colombiano aboliu a escravidão, em 1851, San Basilio e outras comunidades africanas da região de Cartagena e da costa colombiana organizaram uma rebelião cultural. Conforme o governo tentava impor a cultura dominante por meio do "embranquecimento" dessas minorias, promovido por meio da imigração branca, essas comunidades passaram a usar os mesmo obstáculos geográficos que antes as protegeram da escravidão para proteger suas tradições e a identidade cultural afro-colombiana. Esses 150 anos de discriminação sistêmica afetaram a infraestrutura, o acesso à educação e o crescimento econômico dessas comunidades. Hoje grande parte dos cinco milhões de afro-colombianos do país vive na pobreza extrema. Além disso, os 50 anos de guerra civil e os esforços contínuos do governo para conter a violência nas áreas remotas do país (sobretudo na região afro-colombiana de Choco) jogaram mais de cinco milhões de colombianos nas ruas, a maior parte deles afro-colombianos. Enquanto a negligência do governo — ou, no melhor dos casos, sua ineficácia — permite que essas comunidades sejam destruídas, sua cultura e tradições desaparecem pouco a pouco. A sobrevivência se tornou uma forma de protesto. Ainda assim, San Basilio sobrevive. O último palenque do país abriga 3.500 pessoas, muitos deles descendentes de escravos. A vila manteve viva a chama de liberdade registrada em seu nome, "San Basilio de Palenque". Segundo a gramática espanhola, o certo seria "Palenque de San Basilio", mas nesse caso, o lugar pertence ao Palenque — e não o contrário. A vila possui suas próprias músicas, danças, práticas religiosas, medicina tradicional, culinária e até mesmo sua própria linguagem — o Palenquero, a última língua crioula afro-espanhola registrada. A resiliência da pequena comunidade a tornou um poderoso símbolo de esperança para afro-colombianos de todo o país. Tanto que, em 2005, a UNESCO reconheceu San Basilio de Palenque como um Patrimônio da Herança Oral Intangível da Humanidade. Hoje só uma pequena parcela da população fala a língua Palanquero. Muitos jovens nascidos na vila partem para Cartagena e Barranquilla em busca de oportunidades. A maior dificuldade da vila é manter sua identidade histórica conforme ela se adapta às forças incontroláveis da modernidade. A vila se abriu para o mundo exterior pela primeira vez nos anos 60, data da construção da estrada que cruza a cidade. A eletricidade veio nos anos 70, quando o governo colombiano decidiu homenagear a cidade natal de Antonio "Kid Pambelé" Cervantes, boxeador peso-médio e campeão mundial. Embora a modernidade se manifeste em antenas da DirectTV e camisetas falsificadas do Barcelona, uma estátua de Biohos a se libertar das correntes da escravidão na praça central é um lembrete da história rebelde de Palenque e do orgulho que ainda existe nos palenqueros. A alguns metros da estátua, um grupo de crianças joga futebol em uma quadra. É parte de um pequeno complexo poliesportivo. A jóia do complexo é uma recém-reformada academia de boxe, onde sob o olhar atento da estátua de Kid Pambelé, uma nova geração de palenqueros aprende a arte do soco. *** As touradas escondem a brutalidade sob o manto da tradição, cobrindo-a de ideias românticas acerca de talento e coragem. Ernest Hemingway, fascinado pela suposta nobreza do esporte, escreveu um livro sobre as touradas espanholas intitulado Morte à Tarde. Na tradição espanhola, o torero entra na "luta" quando o touro já foi espetado e enfraquecido pela perda de sangue; seu objetivo é matar o touro e impressionar o público. As touradas de Palenque são diferentes. Existem mais pessoas dentro da arena do que na plateia, e o que vemos é uma verdadeira luta. Os touros não são espetados ou enfraquecidos antes de entrar na arena. Não há nenhuma pretensão artística. As touradas de Palenque representam um tipo específico de coragem bruta, própria de homens que enfrentam feras bradando chinelos, chuteiras e diferentes níveis de sobriedade. Atrás das grades de uma arena construída em duas semanas, a vista é pura insanidade. O único objetivo é sobreviver.

Foto: Joseph Swide

O touro corre em nossa direção, um aglomerado disforme de chifres e músculos, cascos e olhos cheios de sangue. Os homens correm como se fugissem de um predador. Escalam os muros para se proteger. Outros deslizam por baixo das grades, uma lembrança da fama do baseball na costa caribenha e uma explicação da finalidade das cadeiras e tábuas que elevam os espectadores do andar térreo. Alguns vendedores ficam no ringue durante a tourada para vender picolés e frituras durante os intervalos. Todos se esforçam ao máximo para fugir do perigo, mas isso não muda o fato deles estarem bebendo alegremente no meio de uma tourada. Após sua entrada triunfal, o touro rodeia o ringue enquanto os homens pendurados nas cercas tentam chutá-lo. Aqueles que trouxeram pedaços de pau cutucam o touro. Aqueles que trouxeram lençóis ou cobertores descem para o ringue e os balançam na frente do touro, tentando chamar sua atenção. Aqueles que só trouxeram suas próprias mãos enfrentam o touro de outras formas; alguns puxam seu rabo. Depois de um tempo o touro se cansa e, quando isso ocorre, ele é laçado e retirado do ringue. Cada touro que entra na arena parece maior e mais violento que o último. O quarto e penúltimo touro do evento se desvencilha da multidão e atinge um jovem que usa uma blusa turquesa e uma mochila da mesma cor. O touro o levanta, carregando-o por alguns metros, depois o joga no chão, próximo à cerca. Preso debaixo da cabeça do touro, o jovem consegue segurar os chifres que tentam destruí-lo, afastando o animal. O touro o arrasta pelo ringue. Ainda segurando os chifres, o garoto se levanta e começa a puxar a cabeça do touro em direção ao chão. Todas as histórias sobre a coragem dos toureiros se tornam reais. Alguns homens tentam puxar o rabo do touro para ajudar o pobre homem, mas o touro não vacila. Ele derruba o jovem no chão e, naquele momento, o sangue e a morte parecem iminentes. Congelado pelo mais puro horror, vejo o jovem afastando os chifres do touro e correndo para uma área segura. Sua camiseta está rasgada, mas ele parece bem. Corre pelo ringue com um pequeno sorriso no rosto. Ele sobreviveu, o que faz dele um vencedor. Antes que eu suba na motocicleta que me levará de volta à estrada, um homem me diz que tenho que voltar para Palenque na próxima tourada. Ele diz que os touros de hoje eram só vaquinhas — os touros grandes chegam amanhã. Os palenqueros, como sempre, estão preparados.

Foto: Joseph Swide

Siga Joseph Swide no Twitter. Tradução: Ananda Pieratti