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cinema

Vou ter saudades tuas, Rust Cohle

Como se um amigo se tratasse.

A familiar e convincente fronha do Rust Cohle. De todos os momentos brilhantes da primeira temporada de True Detective, há um, no terceiro episódio, ao qual volto vezes e vezes. A personagem de Matthew McConaughey, Rust Cohle, e o Marty Hart de Woody Harrelson estão numa grande tenda a assistir a uma multidão de maluquinhos evangélicos reunidos no seu interior. O pastor anda de um lado para o outro no palco, a gritar umas coisas malucas, enquanto a congregação coloca dinheiro no cestinho das esmolas, abanando os braços para a frente e para trás como adolescentes a ter uma bad trip. McConaughey e Harrelson estão a ter uma discussão sobre religião e a sua importância em manter as pessoas boas, e McConaughey — cansado das tretas do seu companheiro — encosta-se a um poste e pergunta, “o que é que isso diz sobre a vida? As pessoas têm de se juntar e contar histórias que violam todas as leis do universo só para conseguir chegar ao fim do dia?”. Como eu digo, foi um momento que me marcou enquanto tentava perceber McConaughey e a sua mudança drástica de carreira. Durante algum tempo, não percebi porquê — é uma boa cena, bem interpretada e genialmente escrita, mas porque é que acabava a revê-la vezes sem fim? O que é que esta cena dizia de mais profundo? Comecei a pensar se algo como isto teria acontecido mesmo a McConaughey na vida real. Em 2009 ou 2010, McConaughey, o playboy imbecil que parecia ter tudo — a namorada brasileira e modelo, o peito depilado e tonificadoa amizade com o Lance Armstrong pré-escândalo — deve ter assistido a um grupo parecido com este, com pessoas a dar graças a algo sem bases assentes na realidade. Talvez mulheres loucas com o Fool’s Gold, o Failure to Launch ou o The Wedding Planner. E perguntou a si próprio o que estariam elas (e ele próprio) a fazer. A mudança radical da sua carreira começou em 2011 com o papel no pouco visto The Lincoln Lawyer, uma adaptação da novela de Michael Connelly em que interpreta um advogado passado da cabeça e em pleno colapso, e acabou no dia 2 de Março com a sua vitória nos Óscares pelo papel em Dallas Buyers Club. Ali, no palco do Hollywood Dolby Theatre, a estrela de How To Lose a Guy in 10 Days surgia no topo do mundo cinematográfico, sem o cabelo loiro e os músculos laranjas pelos quais ficou conhecido, mas pela sua parte num filme sobre sida, masculinidade americana e transgénero. Mas meus queridos, isto é Hollywood, e mudanças drásticas são bastante comuns. John Travolta, Mickey Rourke e Robert Downey Jr. ressuscitaram as suas carreiras graças a papéis decentes — enquanto no passado, nos casos de Rourke e Travolta, isso os prejudicava. O que separa McConaughey destes nomes é a rapidez com que passou de actor gozado a um actor genuinamente interessante; não aconteceu rapidamente, com um papel — como aconteceu nos casos de Rourke e Travolta — ou lentamente, durante o passar dos anos. Aconteceu em três anos, com seis papéis: The Lincoln LawyerKiller Joe, Mud, Dallas Buyers Club, The Wolf of Wall Street e True Detective. O amor que as pessoas sentem por ele hoje é incrível. E mais incrível é o amor que os homens sentem por ele, não se esqueçam há quatro anos odiávamos o gajo por colocar a fasquia do romance demasiado alta. Mas as suas personagens são fixes agora — e portanto ele também o é, porque essas personagens são o que temos. Ele é profundo, sombrio e perigoso, e seja McConaughey, Rust Cohle ou o Killer Joe Cooper que imaginamos, ele é a pessoa que nós todos queremos ser. E este amor é justificado — McConaughey tornou-se um grande actor, capaz de comédia e tragédia, e, como o seu papel em Dallas Buyers Club confirma, está disposto a sacrificar-se fisicamente para oferecer densidade à personagem. Também rouba as cenas com facilidade, ou mesmo o filme inteiro, apesar de surgir apenas numa pequena parte — vejam o seu Mark Hanna, de punho no peito, em The Wolf of Wall Street. De facto, nos seus filmes mais recentes, as histórias parecem ter pouca importância — assistimos porque ele está no ecrã, estamos atentos às subtilezas, e à forma como comanda o enquadramento. Ao contrário de muitos outros actores de Hollywood, as trevas que o acompanham parecem vir de um sítio real. Mas o nosso amor por ele não vai para além disto? Não parece ser mais importante gostar de uma personagem pela sua profundidade do que de um actor por a saber interpretar? O meu grupo de amigos fala dele quase religiosamente — e eu faço parte deste culto. Vou ver um filme só porque ele aparece e convenço o máximo de pessoas a vê-lo comigo. O meu amor por ele começou relativamente cedo na sua transformação, depois de ter visto The Lincoln Lawyer logo após a estreia. Com o passar dos anos fui assistindo a mais e mais pessoas a ter a mesma opinião porque, nele, viam o mesmo que eu: a reviravolta, a história. É como quando ouvimos uma música do caraças de uma banda que ninguém conhece e corremos a contar a toda a gente para ter crédito da descoberta. Falei sem parar sobre o The Lincoln Lawyer, sobre o Killer Joe e sobre o Mud, e, apesar de muita gente gozar comigo quando puxava o nome do McConaughey, tive fé; sabia que a minha crença iria ser validada no final porque estes filmes eram mesmo bons. Há algo na nossa natureza estranha que tem imenso prazer em perguntar, “Já ouviste isto?” quando sabemos que a resposta é não. Sentimo-nos inteligentes, superiores. Mas fazer a mesma pergunta e levar com uma resposta que nos diz que aquilo que gostamos é merda também nos agrada imenso, especialmente quando sabemos que quem duvida vai rapidamente mudar de ideias. Novamente, isto não é algo que pudesse ter acontecido com qualquer um. McConaughey é esperto, tomou decisões inteligentes e merece porradas de crédito por ter os tomates e a motivação para mudar. Mas o nosso apreço por ele vai para lá do seu talento; quando o elogiamos, elogiamos mais a sua história e vemo-nos como os desprezados, tal como o chegámos a ver um dia também. Somos atraídos pela sua ascensão porque gostamos de imaginar que esta poderá prever a nossa própria ascensão. É nele que nos vemo a afastar as vergonhas e os falhanços do passado, reinventando-nos como seres humanos competentes e bem-sucedidos. Este ataque a três frentes — True Detective, The Wolf of Wall Street e Dallas Buyers Club — culminou com a vitória nos Óscares e, subitamente, toda a gente ficou convencida do seu talento. Mas, ainda assim, para todos nós que embarcámos nesta viagem mais cedo, parece o início do desencantamento. Investimos muito na sua ascensão e não o suficiente na vitória, e como com todas as pessoas que se tornam bem-sucedidas, o seu sucesso agora traz-nos uma questão: “onde raio está o meu sucesso?”. Identificamo-nos com ele e por isso devíamos estar prontos a seguir o seu exemplo, reinventando-nos. Mas não, somos fracos e preguiçosos. O desencantamento é inevitável, também, porque suspeitamos que o McConaughey vá estragar tudo. Já confirmou que não vai voltar para a segunda temporada de True Detective e, talvez na ausência disso, venha aí um salário de oito digitos. Com o seu lugar no topo de Hollywood garantido, a motivação para ser sombrio e arriscado pode transformar-se num balde cheio de dinheiro. Apesar de o Óscar representar tudo o que fez para dar uma volta à sua carreira, também pode significar o regresso aos filmes de merda. O actor com o qual ele é comparável é, talvez, Ryan Gosling. O Gosling andou sempre por filmes decentes mas era conhecido principalmente por aquele vómito de filme que é o The Notebook. Depois, com o Half Nelson, entrou numa espiral de grandes papéis em grandes filmes – Lars and the Real GirlBlue ValentineCrazy Stupid LoveDrive — antes de bater no fundo com as porcarias do Gangster Squad e Only God Forgives. Pouco depois teve o bom senso de fingir que se reformou para se afastar da ribalta. No entanto, é adorado por homens e mulheres, de igual forma. Esta é a maior ameaça a McConaughey neste momento — está em todo o lado, omnipresente como a merda de cão, e a não ser que consiga prever as consequências negativas, que estão a chegar, e se esconda numa ilha qualquer como a sua personagem de Mud, vamos todos acordar e perguntar, “Por que raio cheguei a gostar daquele gajo?”. O que é cruel, mas a vida também é cruel; e aparece alguém — Ryan Gosling? Channing Tatum? Danny Dryer? — para se tornar na nova história de reencarnação. As velhas histórias acabam substituídas por novas. O Rust Cohle mostrou-o melhor do que ninguém no terceiro episódio  de True Detective: “assisti ao final de milhares de vidas — novos, velhos — cada um certo da sua realidade, de que as suas experiências sensoriais constituíam um indivíduo único, com um propósito, significado — tão certos que acabaram por ser mais do que um fantoche da natureza. A verdade vem sempre ao de cima. Toda a gente a vê quando os fios são cortados”. Vou ter saudades do Rust Cohle como tenho de um amigo.