Deixei de pagar a renda e isto foi o que aconteceu

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Deixei de pagar a renda e isto foi o que aconteceu

Viveu no apartamento com a sua mãe. Quando ela saiu de casa ele ficou e não pagou o aluguer.

A última vez que o vi, estava a beber uns copos naquele bar de Barcelona, o 'La Milagrossa'. Ele não parecia lá muito bem mas, como sabem, quando cumprimentamos alguém com o tão insípido "Tudo bem?", poucas pessoas vão dizer-nos a verdade. Tu nunca o fazes, então porque vamos exigir aos outros que o façam? Sempre sentado ao balcão a beber cerveja e, de vez em quando, a comer um panado. Sempre na mesma posição, inclinado sobre o bar e trocando algumas palavras com o Nacho ou a Rosa, os proprietários do local.

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Naquela época eu não sabia, mas ele, Ernesto, vivia um verdadeiro inferno.

Ernesto nasceu em Montevidéu mas, depois de cinco anos, a sua família veio morar para Barcelona. A mãe dele tinha um desses negócios de Tarot por telefone, mas com a crise foi tudo por água abaixo e tiveram de mudar-se para outro apartamento - O APARTAMENTO - . Neste novo apartamento tinha vivido, até então, a mãe do ex-marido da mãe do Ernesto - uma japonesa octogenária. Estás a seguir? Perfeito. Para o Ernesto esta etapa de mudanças e de problemas económicos foi bastante complicada.

A coisa piorou e a mãe de Ernesto decidiu fazer as malas e voltar para Montevidéu com o seu irmão mais novo. Ele tinha duas opções: ficar ou cruzar o oceano com a mãe. Obviamente, ele queria ficar, porque era em Barcelona que tinha toda a sua vida, mas não podia dar-se ao luxo de pagar a renda já que tinha sido despedido e, por um mísero dia, ficou sem direito ao fundo de desemprego. Estava tudo destinado a correr mal mas, mesmo assim, decidiu ficar apesar de saber muito bem que não podia pagar nem um mês de renda. Esta decisão foi tomada sabendo de antemão que o senhorio era um sacana que não tinha o apartamento declarado. O gajo era um chico-esperto e subia a renda quando queria e pelo valor que lhe apetecia. Esta insegurança fiscal do apartamento dava as garantias necessárias para que o Ernesto vivesse "tranquilamente" uns quantos meses sem ter de gastar um tostão em rendas. Para vossa informação, o Ernesto não embarcou nesta aventura como um louco, primeiro assegurou-se de que não teria nenhum problema com a lei. No caso do senhorio querer expulsá-lo, provavelmente já teria encontrado um trabalho ou já teria fugido para outro país.

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A vida por aqueles lados não foi muito tranquila. A luz estava cortada e nem tinha água. Na verdade, ele abastecia-se de uma torneira que estava na parte da frente do prédio e era usada para regar as plantas. Para ter água em casa roubou um carrinho de compras e carregava-o com cinco garrafas de litro cheias de água. Chegou a ter até 20 garrafas de cinco litros no apartamento. Para comer também estava tramado mas, felizmente, o Nacho do La Milagrosa estava pronto para ajudar e oferecia-lhe umas cervejas e umas empadas. Noutros dias vendia algumas coisas do apartamento e, se conseguisse amealhar 10€, podia comer durante uma semana. Os pratos preparados de 3€ da loja de congelados também o ajudaram bastante. O curry de frango e as ervilhas com bacon eram os melhores.

Ao ter as necessidades básicas atendidas, o resto não poderia ser assim tão complicado. Mas, afinal, acabou por ser um pesadelo: uma acumulação infinita de sofrimento, tensão e agonia. O Ernesto sabia que estava a fazer merda, estava a aventurar-se por caminhos ilegais mas a situação era tão extrema que se estava a cagar para o senhorio. O sofrimento não vinha das possíveis consequências negativas de tudo isto mas sim pelas constantes e insistentes visitas do senhorio para exigir a renda e ter de inventar mil uma desculpas. Dizia não saber de nada e que, em teoria, a renda era paga pelo ex-marido da mãe, entre outras mentiras. Estava sempre a adiar e a pedir mais tempo com a promessa de que resolveria tudo na semana seguinte. Prometer coisas que não podes cumprir gera uma acumulação esmagadora de sofrimento, é algo que te faz sentir um desperdício humano. Também recebia SMS constantes do senhorio, chamadas do administrador imobiliário e cartas registadas com ameaças de despejo. Este aviso permanente de que estava a fazer algo errado consumia-o por dentro. Quando chegava o senhorio não lhe abria a porta e tinha de fingir que não estava em casa, era terrível, desesperante e triste. O momento em que decides não abrir a porta a alguém produz um mal-estar enorme mas, o que é que vais fazer? Era uma sensação de ansiedade extrema, de bater no fundo e não saber que fazer para solucionar a confusão em que te meteste. Esta situação durou um ano inteiro. Ainda assim, o Ernesto nunca teve um verdadeiro problema, nem uma única denúncia, seguramente por ser um apartamento em condições ilegais. Na realidade, se ele ainda estivesse em Barcelona quando o senhorio mudou a fechadura sem nenhuma ordem, teria sido ele com a razão em tribunal.

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Aparecem muitas notícias de despejos 'express', mas o que o Ernesto viveu não foi nada comparado a isto, tinha medo que o expulsassem mas nunca lhe chegou qualquer aviso prévio. Durante esse ano só por uma vez teve medo de ser despejado. Foi quando vendeu a câmara e o computador para poder pagar um mês de renda. Agora, passado tanto tempo, o Ernesto acredita que pagar esse mês foi uma parvoíce, o mais certo era não ter acontecido nada. Isto de estar numa situação de medo constante, faz com que a tua cabeça não funcione da melhor maneira, leva-te ao colapso e em vez de pensares com clareza faz com que te afundes cada vez mais. Os amigos diziam-lhe que não ia acontecer nada, mas assustou-se tanto que teve de vender as ferramentas com as quais podia manter a esperança de encontrar um trabalho. Há momentos em que o medo vence a razão.

Um dia depois de Ernesto regressar a Montevidéu, o proprietário entrou na casa e levou todas as suas coisas: caixas de roupas, fotografias, livros, DVDs e toda a parafernália que se foi acumulando ao longo do tempo. Dias mais tarde, um amigo da família foi ao apartamento para ver se estava tudo ok, mas ao tentar entrar viu que o proprietário tinha mudado a chave. Esse foi o fim. Meses e meses de "já lhe pago, afinal não pago" tinham acabado.

Antes de deixar o país resolveu expressar toda a porcaria com que tinha vivido esse ano. Primeiro deixou de levar o lixo e, como tinha uns sprays por ali, começou a pintar as paredes e a deixar tudo cagado. Era uma forma de mostrar que se sentia como um merdas. O que lhe poderia acontecer? De todas as formas ia deixar o país.

Não é algo de que o Ernesto se sinta orgulhoso. Quem quer viver com insegurança e medo? Não é melhor pagar a renda ou comprar uma casa? Sim, é claro que é melhor vivermos na nossa própria casa, mas também em momentos extremos um gajo precisa de pensar no seu bem-estar e prevalecer sobre tudo o que existe, pelo menos durante um tempo. Ele sabe que não fez tudo bem, mas nem sempre agimos correctamente. Ele sabe perfeitamente que não quer repetir e que nem mesmo na brincadeira voltaria a passar por tudo isto.

Quando se apercebeu que precisava de uma mudança de cenário, Ernesto falou com sua família e voltou para Montevidéu. Inicialmente, foi bastante complicado deixar para trás uma vida inteira e começar uma nova. Ele diz que a América do Sul é outro mundo. Tudo à sua volta é novo e, agora, depois de um ano, parece que finalmente as coisas estão no caminho certo e tudo vai melhorar.

Podes ver mais fotografias de apartamento do Ernesto aqui