Desejos Feios num Mundo Belo: Um Ensaio de Fotos de 'Bloodborne'

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Desejos Feios num Mundo Belo: Um Ensaio de Fotos de 'Bloodborne'

Destrinchando a beleza gótica criada a partir da mente do Hidetaka Miyazaki da From Software.

Todos os screenshots pelo autor.

Em qualquer outro estúdio, você começaria a chorar se seu chefe anunciasse a intenção de colocar "muito, muito sangue no próximo videogame". Só Hidetaka Miyazaki da From Software pegaria a substância mais abundante dos videogames e tornaria isso significativo. O sangue em Bloodborne não é derramado gratuitamente – isso é um tema profundo que comanda o mundo do jogo e tudo que está nele. O jogador fica cada vez mais coberto de sangue fresco, enquanto aquele de encontros anteriores vai secando, coagulando e empastando quanto mais você progride. A coisa que flui em todos nós é adorada pela igreja, estudada por especialistas e temida pelos iluminados.

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A primeira vez que seu sangue é derramado, você é transportado para The Hunter's Dream. Essa área central, como o Nexus de Demon's Souls, é incorpórea e perturbadora; você sente que não está em lugar nenhum. É uma sensação de vaga incongruência, uma existência sufocante e enevoada. Isso lembra aqueles momentos de sonho quando você está em casa, só que as luzes não acendem, sofá está no lugar errado ou sua porta está cheia de pessoa que você não reconhece. Hunter's Dream é uma bruma lânguida e desconfortável onde você explora cuidadosamente o horror opiáceo que se desenrola ao seu redor. A arte dessa área perturbadora é algo que Miyazaki conseguiu reviver dos mortos. Isso me lembra as salas de datilografia de Resident Evil e, mais memorável, o vilarejo de Tristam em Diablo, impregnada de horror gótico.

A apreciação de Miyazaki do gótico se baseia em uma arquitetura enorme, complexa e intrincada, e paisagens cheias de medo. No século 19, vários artistas e arquitetos olharam para o passado medieval para construir obras de arte, inspiradas numa era passada, uma tentativa de reclamar sua beleza e grandiosidade. O cenário central de Yharnam em Bloodborne reflete a história do gótico: uma cidade construída em honra de artefatos de cura descobertos por investigadores de túmulos, batizada em homenagem à Rainha pthumeriana Yharnam; isso é, essencialmente, um monumento gigante habitável dedicado aos mortos. Quando o jogador chega a Yharnam, tudo isso está perdido, e a noite do Caçador se aproxima. Yharnam cresce à sua frente, se estende ao seu redor, opressiva e ameaçadora, sobrecarregada de espirais sempre ascendentes e portões opulentos e trabalhados. Antes uma visão maravilhosa e imponente, esses edifícios agora sufocam o horizonte, agigantando-se como terríveis obstáculos, lápides colossais num cemitério do qual você fará parte em breve.

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A claustrofobia prevalece enquanto você se aventura pelas ruas de pedra estreitas e úmidas, lembrando uma favela vitoriana, cheia de moradores assustados e monstruosos, enraivecidos com a sua presença. "É tudo culpa sua!", eles gritam, enquanto sacodem suas tochas acesas numa tentativa de te manter afastado, fazendo você imaginar que horrores trouxe consigo. Isso lembra O Processo de Kafka, aonde Josef K é preso por um crime sem nome, cujos detalhes nunca são relevados a ele nem ao leitor.

Assim como os jogos Souls anteriores, o jogador não é o centro do universo – é um indesejado. Na verdade, quase tudo e todos não estão felizes em te ver; assim como em Dark Souls, a hostilidade se infiltra em todos os aspectos do meio ambiente. Seus arredores estão vivos, conscientes da sua presença, te observando. Os galhos das árvores, balançando perturbadoramente com o vento, parecem tentar te agarrar como tentáculos conscientes, lembrando mais fauna que flora. As nuvens escuras e pesadas te empurram para baixo, desejando que você fracasse. A lua é gorda, ofuscante e ousada, como um olho sempre sobre você. Cinzas caem delicada e silenciosamente sobre Yharnam como neve; cinzas dos corpos queimados enquanto os cidadãos tentavam limpar a cidade de sua maldição. Essa personificação do meio ambiente deixa uma sensação permanente de ameaça, enquanto Miyazaki desenha uma trilha entre beleza gentil e horror impronunciável.

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Continua após o vídeo abaixo.

O design de som casa perfeitamente com esses ambientes opressivos para garantir que você nunca esteja confortável; a vegetação rasteira da Forbidden Woods está repleta de cobras, seu sibilar se mostrando um fundo extremamente irritante para as voltas no labirinto. As áreas silenciosas são, ironicamente, ensurdecedoras, e mesmo locais seguros geralmente são desagradáveis: a lanterna em Central Yharnam abriga um cúmplice nunca visto que se trancou em sua casa, cuja tosse incessante e insuportável garante que você não tenha momentos de paz.

Todo mundo que você encontra é assombrado por algo, de uma maldição física óbvia a coisas mais humanas e compreensíveis. Delírios de grandeza, fé e a cegueira que isso traz, um desejo de viver através de seus descendentes, a perda de um filho ou uma mãe, a necessidade de companhia, uma busca por iluminação, ou talvez veneração, a qualquer custo. Essas histórias humanas se centram em fraquezas, ego e vícios; são eles que trazem a maldição para o mundo. É um traço que você encontra nos jogos Souls: gente feia com desejos feios num cenário belo. A beleza está no mundo; o horror está em seus habitantes e o que eles trazem.

A lua vermelha vai descendo, revelando a fase final do círculo e todo o horror cósmico lovecraftiano de Yharnam. A revelação de que O Cosmos não é um mundo acima do nosso, mas paralelo, visível apenas para aqueles cujos "olhos" turvam a clareza das águas, e isso te deixa à mercê de um universo de pesadelo. Nesse capítulo final, que se mostra uma verdadeira espiral da loucura, a Unseen Village revela realidades chocantes e horrendas que nunca deveriam ser vistas por olhos humanos.

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As criaturas Amygdala encarnam essa sensação de enfrentar o inimaginável, uma forma que não reconhecemos no mundo natural. Elas parecem uma combinação de aranha e árvore retorcida, sem nenhuma indicação de onde um arquétipo começa e onde outro termina. Lovecraft descrevia aquilo que não pode ser imaginado e isso está nas criaturas que Miyazaki criou, o medo do desconhecido.

Miyazaki é um mestre em criar mundos meticulosamente turvos, deliberadamente pensados para fazer o jogador se sentir perdido o tempo todo. Isso está escrito na arquitetura de Bloodborne. Como seres humanos, somos programados para identificar padrões; estamos sempre buscando o contorno de uma coisa, os pontos de começo e fim, um esboço, uma palavra-chave, uma característica definidora, qualquer coisa que nos dê uma ideia do que é aquilo. Ansiamos por um lar, um lugar onde podemos voltar de vez em quando e que está sempre como deixamos. Miyazaki sabe como tirar tudo isso e garantir que, não importa onde estamos em seus mundos, sempre nos sentimos muito longe de casa.

@GaryDooton

Tradução: Marina Schnoor