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Música

A Beleza do Erro: Uma Análise Sobre o Glitch Japonês

Um passeio por uma seara bem específica da cena de música eletrônica no Japão e sua relação com Shakespeare e Chapolin.

No começo, sem saber bem o que procurar, foi meio difícil. "Sound designing in music", "field recording in music", "barulheira do caralho in music", não lembro ao certo como pesquisei, mas uma hora acabei encontrando a música de Daisuke Tanabe em que no lugar da bateria parece ter o som de um cara vasculhando a gaveta p'ra achar uma fita k7 e o tape deck começa a vomitar as fitas que ele testa, e isso era exatamente o que eu queria de uma música naquele momento. Dando uma olhada no Soundcloud de Daisuke, vi que em sua bio ele diz usar softwares de uns caras chamados DUB-Russell (duo formado por NOEL-KIT e Yotaro Shuto). Claro que fui atrás, porque eu também tava querendo fazer música nessa onda e queria ver como era o processo, e é aqui que o bagulho começou a ficar sério.

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Dando uma vasculhada no site deles descobri o selo +MUS (ou Plumus) que é um desdobramento do Grupo de Usuários de Max de Tokyo, onde Max no caso é uma forma curta p'ra Max/Msp/Jitter, linguagem de programação voltada para música e vídeo. Ou seja, é uma galera que cria os próprios programas p'ra fazer música e VJing, e além desse fator unificante, pude notar que a grande maioria desses artistas se embrenhava na estética glitch, que foi o que me fez ruminar um pouco a respeito desse tipo de arte.

Glitch art é o erro enquanto premissa, de um modo geral o erro eletrônico/digital, repetições curtas não planejadas, espasmos, confusão estrutural. Isso acabou me fazendo relacionar o glitch (palavra originada de um termo alemão para "escorregadio") com o conceito de ato falho de Freud que seria basicamente um glitch na mente humana, uma palavra ou frase dita, ouvida, escrita ou lida de forma errada. Muitas vezes o ato falho é categorizado como algo engraçado, mas não necessariamente.

Esse papo de ato falho me fez pensar no porquê a gente gosta do personagem shakespeareano Dogberry de Muito Barulho Por Nada, que geralmente erra as palavras trocando uma ou duas letrinhas aqui e ali por pura burrice, ou num exemplo mais próximo os personagens de Chaves e Chapolin que vivem fazendo isso e talvez é dai que o Bolaños acabou ganhando o apelido de Chespirito/Pequeno Shakespeare.

Sobre a questão das pequenas repetições não pude deixar de lembrar de um trecho do livro Cantos de Maldoror, obra do proto-surrealista Conde de Lautréamont, mais especificamente no Quarto Canto, em que o personagem chegando a um certo grau de loucura começa a apresentar uns tiques nervosos em seu relato, repetindo palavras e expressões, e além da pura repetição sequencial acaba repetindo-as fora de hora, um verdadeiro glitch narrativo.

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Outra relação que fiz do glitch foi com os escritos de Henri Bergson sobre o riso, em que no fim das contas ele meio que define que o que nos provoca o riso é quando um conceito mecânico se aplica ao ser vivo, e isso me deixa rodando em círculos quando começo a pensar no glitch como um erro mecânico, porém muito similar a erros do cérebro humano e que esse erro mecânico foi causado pelo erro humano em sua construção.

Mas o glitch é engraçado? Não é bem assim, eu não racho de rir toda vez que ouço uma música zuadaça ou vejo uma imagem distorcida, mas mesmo o humor nem sempre provoca o riso. Eu não saio gargalhando lendo Shakespeare (às vezes sim, ok), mas muitas peças de comédia você lê, assiste, consume, acha genial, porém não arreganha os dentes, dai vem aquelas diferenças de humor: witty, cômico, comédia, que eu não pretendo abordar aqui mas você já deve estar imaginando do que eu tô falando.

O que eu tô querendo dizer é que o erro geralmente atrai atenção p'ra si, a princípio de forma depreciativa e engraçada, é claro, mas muitas vezes visto de forma intrigante, como quando você tá vendo as páginas policiais do jornal e lê "carro de pelúcia" em vez de "carro de polícia".

Vamos aos artistas e suas técnicas que é o que interessa. Como já dito, o Daisuke Tanabe revelou que usa softwares da dupla DUB-Russell. Fui dar uma olhada nesses programas p'ra ver o que dali que ele usa e achei o seq4nkon2, que consiste basicamente em carregar uma série de samples. Ele arranja aquilo de forma aleatória em um loop, praticamente uma versão sonora da famosa técnica do dadaísta Tristan Tzara em que ele recortava palavras do jornal, misturava e à medida do que ia tirando se formava um poema. A principal diferença entre Tanabe e DUB-Russell nesse processo é que o primeiro parece usar mais sons de objetos cotidianos nessa mistura, enquanto o duo busca usar mais barulhos eletrônicos, ruídos, blips e sons que parecem ter sido extraídos por circuit bending (que não é a onda deles, mas existe sample p'ra isso).

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Olha a criança aí.

Uma característica do DUB-Russell que o difere um pouco mais dos outros artistas é o de que na maioria das músicas não há muito bem o conceito de harmonia e melodia, mas sim texturas sonoras formadas por várias fontes como paisagens sonoras, drones e trechos distorcidos. Tudo recortado, sobreposto, invertido, justaposto de forma muito veloz, como se fosse uma versão hardcore da peça Imaginary Landscape nº 4 do compositor John Cage - essa obra é escrita para ser executada por 12 aparelhos de rádio que ficam trocando de estação de acordo com indicações dadas em partitura.

​Aqui dá p'ra ver umas 4 faixas de áudio que são estraçalhadas pelo programa.

Masami Takahashi, que atende pelo pseudônimo jealousguy, e Takahiro Uchibori, que atende por metome, têm em comum o uso de recortes musicais feitos de uma forma não muito convencional. Enquanto a maioria dos produtores quando vai recortar um sample de uma música seleciona o trecho certinho com começo e fim para manter uma sensação de completude do trecho, Takahashi e Uchibori parece pegar trechos cortados meio que ao acaso. Essa impressão é por conta de esses samples começarem no meio de uma sílaba cantada e acabando nem na metade de outra. Ainda assim, o cérebro tenta montar o quebra-cabeça, mas eles completam essas lacunas entre os samples com harmonia e arranjos próprios, como se estivessem usando a brincadeira do surrealista do cadáver esquisito consigo mesmos.

Dessa galera ainda tem muitos trabalhos interessantes como o de Katsuhiro Chiba, lycoriscorisnanonumYaporigami e muitos outros, mas acho que os que falei aqui resumem bem a cena japonesa que eu enxergo daqui de longe.