Visitamos o Clube de Futebol que Funciona no Terreno de uma Prisão

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Visitamos o Clube de Futebol que Funciona no Terreno de uma Prisão

O General Lamadrid agrega carcereiros, moradores, presos e torcedores num só lugar.

Carcereiro assiste ao jogo do Lamadrid.Foto: Gabriel Uchida

A princípio era um terreno baldio cheio de lixo. Até que os garotos do bairro começaram a bater uma bola por ali e, meses depois, a coisa ficou séria. Em 11 de maio de 1950, os peladeiros fundaram um clube para representar a vizinhança de Villa Devoto, em Buenos Aires, na Argentina. Formava-se, como quem não quer nada, a partir dos detritos, o Club Atlético General Lamadrid.

Modesto e com baixo orçamento, o time seria outro típico time pequeno da América do Sul. Seus entusiastas não tinham grandes ambições além de montar uma equipa valente que inspirasse a comunidade local. Mas existia, entre jogadores e torcedores, um componente que tornava o clube único: uma relação íntima com a única prisão da cidade, localizada a 50 metros do campo.

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Os jogadores, a torcida e, mais atrás, a cadeia. Foto: Gabriel Uchida

A sede do General Lamadrid, expandida nos anos seguintes à fundação, ocupa até hoje uma área que não é do clube, e sim do sistema penintenciário argentino. Já o cárcere, segundo uma lei nacional, não deveria estar dentro da cidade de Buenos Aires. Em tese, ambos estão errados. Mas o esquema funciona. Com a cadeia ao lado, o clube rompe os muros da prisão e cria um ambiente inusitado durante as partidas: moradores do bairro, carcereiros e presos são todos iguais, todos torcedores. Até poucos anos, as janelas do pavilhão em frente ao campo não eram tão fechadas e os presos esticavam toalhas azuis para fora durante os jogos quando era possível ver também seus rostos e braços.

"Quando subimos de divisão em 1983 [da série D para a C], os detentos atiravam papelitos para comemorar e em várias outras vezes a torcida gritava 'que libertem os presos, queremos liberdade' e eles aplaudiam de dentro da cadeia", conta o jornalista Marcelo Izquierdo, um torcedor fanático e autor do livro "Carceleros" sobre o time.

Sede do clube. Foto: Gabriel Uchida

Não foram poucas as vezes que tentaram tirar o General Lamadrid da área. Os seus adeptos, porém, sempre foram mais fortes. Resistiram todas as vezes. Em 1963, quando perceberam que o serviço penitenciário se preparava para uma remoção, os próprios sócios se entrincheiraram por quatro dias no clube e ergueram um muro novo. A construção, feita às pressas e sem nenhum profissional do ramo, ficou toda torta e se tornou, para os mais velhos, um monumento à bravura do clube.

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Torcedores da antiga se misturam aos mais novos. Foto: Gabriel Uchida

O time resistiu também à ditadura militar, quando o complexo penitenciário à frente era o destino de presos políticos. Na época, todas as ruas ao redor eram fechadas. Segundo os moradores locais, apenas os vizinhos podiam transitar pela área. Eram tempos sombrios na Argentina e com histórias mal contadas. Uma das mais faladas pelos moradores de Villa Devoto foi a de que um helicóptero da polícia desceu no meio do campo com presos encapuzados sem pedir a permissão ou avisar ninguém. Ainda assim, com tantas ameaças e preconceito, o clube segue com uma torcida fiel e presente.

Policiamento reforçado em dias de jogo. Foto: Gabriel Uchida

A paixão pelo clube é tanta que há ex-detentos que, mesmo liberados, preferem não sair da prisão. É o caso de Roberto Gonzalez, de 58 anos. "Minha mulher fica brava, mas eu fico mais aqui no clube do que em casa e vou vir aqui até a minha morte", diz. Ele aprendeu a amar o time porque passou a infância na casa de Chino Mesiano, que vivia a 20 metros de sua porta, um mito do futebol argentino e o maior ídolo da história do General Lamadrid.

O ex-detento Roberto Gonzalez, de 58 anos, ainda assiste aos jogos da prisão. Foto: Gabriel Uchida

Mesiano cresceu no bairro de Villa Devoto, jogou no General Lamadrid desde criança e depois foi para o Argentinos Juniors, Rosario Central e seleção nacional. Em 1964, na semifinal da Copa das Nações contra o Brasil, foi Mesiano quem teve a tarefa de marcar ninguem menos que Pelé no auge de sua carreira. Nesse jogo, Edson Arantes do Nascimento passou 30 minutos sem conseguir fazer absolutamente nada. Com raiva, deu uma cabeçada no nariz do argentino, que caiu sangrando. Como o juiz não viu o lance, nada aconteceu com o brasileiro. Mesiano, por sua vez, teve que ser substituído – e saiu de campo para entrar na história como o argentino que anulou Pelé.

Entrada de visitantes no estádio. Foto: Gabriel Uchida

Hoje, em meio às bandeiras e faixas da torcida do General Lamadrid, está também o filho de Chino Mesiano, que vai sempre aos jogos. Ele cresceu junto de outros garotos do bairro e compartilha o mesmo amor do pai pelo time. Um de seus grandes companheiros de jogo é Pablo Lucas, de 36 anos, um torcedor que já esteve dos dois lados: na arquibancada e na prisão. Por cerca de dois anos ele esteve detido no pavilhão em frente ao campo e, obviamente, ficava na janela para torcer pelo clube todos os sábados. "Eu via a minha mulher, cachorro, irmãos, toda a família no estádio e gritava para eles", conta Pablo, que também cantava junto da torcida e balançava sua camisa como se estivesse na tribuna.

Tattoos do Pablo Lucas. Foto: Gabriel Uchida

E não é difícil imaginar a primeira coisa que fez ao sair da prisão: foi à arquibancada assistir ao jogo do General Lamadrid. "É um orgulho, há poucos que entendem", ele explica.