saúde mental

Aproveitemos a quarentena para deixar de fazer coisas

Lembras-te da última vez que não fizeste absolutamente nada? Eu também não.
Madalena Maltez
Traduzido por Madalena Maltez
cuarentena dejar de hacer cosas
Dolce far niente de Auguste Toulmouche. Imagen vía Wikimedia Commons/CC 0

Este artigo foi publicado originalmente na VICE ES.

Que tal está a correr o confinamento em casa? Espero que bem, porque ainda vamos andar nisto uns tempos e já estamos a arrancar cabelos. Felizmente, passamos o dia a receber memes, vídeos do que é que os vizinhos andam a fazer para combater o isolamento e alguns discursos que nos convidam a questionar certas coisas. Mas tudo bem, em tempos de crise costumam surgir reflexões interessantes e necessárias.

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Curiosamente, apesar de estarmos trancados em casa, não paramos de receber estímulos e sugestões para preencher o nosso tempo vazio. Ainda assim, se há uma palavra que tem surgido nos dias de hoje é ABORRECIMENTO. E eu pergunto, quando é que foi a última vez que não fizeste absolutamente nada? Agora, mais do que nunca, aparecem mil e um planos de lazer, revistas com edições gratuitas, alguns serviços de streaming oferecem um mês grátis e muitas aplicações permitem que te registes sem ter de pagar fidelização.

Paradoxalmente, nesta altura em que somos forçados a paralisar as nossas vidas, nunca tivemos tantas coisas para fazer. "Vê esta série!", "Lê este livro!", "Experimenta esta receita!", "Aprende a tricotar!".

Hoje, mais do que nunca, mantermo-nos ocupados está na ordem do dia. Mas, pára para pensar: Desde quando é que te interessa o yoga? Não vais acabar o Cem Anos de Solidão nem que fiques cem anos em quarentena! Quem é que queres enganar? Há anos que nos queixamos de que não temos tempo para desconectar, mas somos nós que nos empenhamos em estar permanentemente conectados.

Estamos habituados a passar a vigília inteira ocupados, stressados, a participar em todos os eventos sociais com medo de perder alguma coisa. Fazemos isso para nos sentirmos bem, claro, para dormir em paz sabendo que esprememos o sumo da vida ao máximo, mas, na realidade, estamos exaustos e desejamos com todas as nossas forças atirar-nos para o sofá e ver RuPaul. No entanto, elevámos a máxima de ter que espremer a vida ao máximo a tal ponto, que é possível que o próprio acto de viver tenha perdido todo o significado. Porque é que agora haveria de estar a ser diferente?

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Não importa que estejamos confinados em casa por causa de um vírus altamente contagioso que fez paralisar a economia e o ritmo mundial, precisamos de continuar a ser tão produtivos como sempre. Sempre a par de todos os memes, atentos às histórias do Instagram para saber o que está a acontecer em casas alheias e a verificar o e-mail constantemente. Continuamos a ter FOMO, apesar de não podermos sair de casa, apesar de metade da Europa não poder sair de casa. Sempre com a intenção de não deixar de ser produtivo, de não deixar de "viver", de aproveitar até à última gota o nosso intelecto, aproveitar esta nossa curta existência.

Mas, eu quero encorajar-te a fazer exactamente o contrário. Por que diabos não aproveitamos o momento para fazer absolutamente NADA? O tédio é uma ferramenta poderosa e inspiradora e, acima de tudo, necessária. Muitas das grandes ideias da história surgiram após uma boa dose de tédio. O tipo que fez uma fogueira pela primeira vez? Estava entediado. A preguiça, o acto de contemplar o nada por um longo período de tempo, é um bom recurso para que nasça criatividade. Esta crise global paralisou o piloto automático da nossa sociedade, saímos da rotina, desse ritmo de vida em que normalizamos o stress e a sobre-produção.

Definitivamente, temos fobia aos tempo mortos, talvez por termos medo de escutar o que quer que seja que tenhamos cá dentro. Seja como for, é curioso isto de nos sentirmos culpados por não fazer nada: fará sequer sentido que o tempo, o nosso bem mais precioso (porque não, não é o dinheiro), se perca precisamente por o querermos aproveitar ao máximo? Parece um pouco absurdo, na verdade.

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Eu sei que, no fundo, mesmo que não queiras admitir, estás a gostar um bocadinho desta reclusão forçada. Como se, de repente, fosse um alívio não ter que ir ao ginásio depois do trabalho, ou ir a todos aqueles concertos cada fim-de-semana, sem gastar dinheiro em parvoíces ou sair à noite e passar dois dias de ressaca e mau humor. Estás a gostar um bocadinho, admite.

Considerando-nos indivíduos multitasking, pensamos que podemos desfrutar do pôr-do-sol enquanto olhamos para o telemóvel, mas a realidade é que perdemos a possibilidade de experimentar o prazer em si mesmo. Somos como robots, mecanizados, letárgicos e esta mudança drástica forçada despertou-nos da letargia. O tédio é fértil, o tédio pode devolver-nos a humanidade. Perder tempo é uma necessidade humana que temos vindo a aprender a ignorar.

Sentimos culpa quando somos improdutivos e, por isso, mergulhamos num turbilhão de actividades sem sentido que levam à apatia, tristeza e frustração. Achas-te muito sortudo por pagares todas as plataformas de streaming, por teres música disponível onde e quando quiseres no Spotify? Bem, daqui a um tempo, isso será tão emocionante como lavar a cara cada manhã ao acordar.

Por isso esconde o telefone, desliga a televisão, deixa de lado a Netflix e, simplesmente, olha pela janela, deita-te no sofá, desfruta de uma boa refeição, sonha acordado, aborrece-te, sê inactivo! O tempo já não é desculpa.

O destino, para o bem ou para o mal, deu-nos esta oportunidade. Aproveita-a para desfrutar da maravilhosa prática de não fazer nada, sem te sentires culpada. Talvez ao estarmos sozinhos, quietos, a contemplar a humidade que temos no tecto do quarto, nos ajude a reflectir sobre nós próprios. Quando tudo acabar, serás melhor no teu trabalho e estarás contigo mesmo. Talvez tivesse que vir um vírus mortal para nos apercebermos disso. Já vais ver quanta arte irá surgir destas semanas (ou meses) de isolamento.


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