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natal

Fiz um jantar de Natal por menos de 10 euros

Não só é possível, como é necessário.
Madalena Maltez
Traduzido por Madalena Maltez
A triste noite de Natal de Pol Rodellar
Todas as fotos pelo autor.

Este artigo foi originalmente publicado na VICE Espanha.

O Natal é um pesadelo, pelo menos para as pessoas que não estão cheias de pasta ou que não precisam nem de dinheiro nem de comida para continuarem a viver. Durante esta época acumulam-se muitos gastos, todos eles excessivos. Temos que oferecer mil merdas a amigos e familiares, o aquecimento em casa vai fazer a conta da luz disparar e, ainda por cima, acumulam-se jantares e almoços de Natal em casas de amigos em que, para além do dinheiro que gastamos na gasolina ou no metro para lá chegar, ainda há que levar uma garrafa de vinho ou uma sobremesa.

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Outros amigos também vão querer "comemorar o Natal" connosco antes de saírem da cidade para irem para as suas terras da treta ver a família e vão despedir-se de forma emotiva, o que implica jantares em restaurantes daqueles com guardanapos de pano (os caros) e saídas à noite daquelas em que gastamos demasiado dinheiro em copos e ainda mais em benurons e Uber Eats, para aguentar a ressaca do dia seguinte.


Vê: "Aprende a fazer um jantar de Natal vegetariano"


Para além de tudo isto, a qualquer momento família ou amigos próximos vão exigir-nos indirectamente que façamos a gestão de um jantar natalício em nossa casa, o que será um gasto adicional importante. Mas, não se preocupem, porque propuseram-me fazer um jantar de Natal com apenas 10 euros e consegui. Portanto, atentem bem ao que se segue, porque esta informação pode salvar-vos o mês.

Digamos que a minha casa é agora um restaurante, “La Maison du Billet de Dix Euros” ("A Casa da Nota de Dez Euros"), boa? A questão é que aqui, n'A Casa, achamos que um jantar de consoada consiste numa boa variedade de pratos, porque a graça está na abundância, na disponibilidade de MUITOS produtos. Trata-se da celebração do nascimento de Jesus e não podemos ser avarentos com nada, é este o lema aqui na "Casa da Nota de Dez Euros", que se pode ler na placa pendurada na entrada. A ideia geral de tudo isto é que seja um menu surpreendente, que fascine os potenciais convidados. Os jantares de Natal habituaram-nos a esperarmos uma certa espectacularidade, não posso limitar-me a fazer um menu normal, seria demasiado fácil, com 10 euros, fazer arroz branco e uma perna de frango. Há que surpreender, fazer magia.

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Fui ao Minipreço, que tem fama de ser um dos supermercados mais baratos da cidade, para adquirir os alimentos. A minha intenção consistia em comprar o máximo de produtos possível, todos marca branca, para tentar que cada elemento me custasse, se desse, menos de um euro. Deambulei algum tempo, a avaliar as minhas opções de menu e, finalmente, depois de fazer contas, ali às voltas com a calculadora do telemóvel (um cérebro não chega para tanto), sob o escrutínio misericordioso do resto dos compradores, decidi-me por isto:

productos Dia

-Sopa instantânea de frango com massa (0,59 €)
-Delícias do mar (1,85 €)
-Mini empadas de atum e bonito (1,35 €)
-Salsichas “Wieners Classic” Oscar Mayer (0,95 €)
-Mozzarella fresca (0,86 €)
-Paté de porco ibérico (0,78 €)
-Mini tostas (0,64 €)
-Azeitona verde sem caroço (0,62 €)
-Peito de peru braseado Campofrío (1 €)
-Cones 3D de queijo e bacon (0,48 €)
-Chocolate preto fondant (0,75 €)
-Saco reutilizável (0,05 €) TOTAL: 9.92 €

gastos Dia

Um espetáculo do caraças, até comprei um saco de plástico para transportar tudo e sobraram-me oito cêntimos, ou seja, temos aqui um vencedor. Durante o meu passeio pelo supermercado já estava a projectar o menu dessa mesma noite, tinha em mente vários pratos e já começava a ter um vislumbre do grande êxito da jantarada n'A Casa".

Suponho que os mais astutos tenham reparado que não comprei nada para beber. Certo. Houve um momento em que peguei numa garrafa de cava "semi-seco" a 1,95 euro, mas estragava-me o budget. Eu sei que um jantar de natal sem cava ou champanhe é como ir ao jardim zoológico e não ver os gorilas a masturbarem-se, mas que se lixe, para esta ocasião decidi que os convidados trariam as bebidas.

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Agora, com a vossa licença, apresento-vos o banquete:

Nochebuena triste

*ehem*

Entrem por favor, sejam bem-vindos à "Casa da Nota de Dez Euros", especialistas em surpresas gastronómicas. Se vos parecer bem, darei início à apresentação do menu de degustação:

escudella

GUISADO CATALÃO COM SALSICHAS

Como primeiro prato temos esta carismática sopa, típica dos jantares natalícios catalães. A característica especial desta receita são os vários bocados de salsichas frankfurt cortadas às rodelas e acrescentados à sopa instantânea durante a cozedura. Estas simpáticas ilhotas servem de substituto ao habitual condimento carnívoro (porco, frango, lombo…) deste prato.

empanadillas y frankfurts fritos

“MORRER NO MAR, MORRER NA MONTANHA”

Como segundo momento, concebi este prato apaixonante que representa o horror que sofrem os animais que vivem quer no mar quer na montanha. Como podem ver, aproveitei as salsichas da sopa para elaborar a proposta; é essencial que nestes menus de 10 euros se aproveite um só produto para elaborar vários pratos, só assim chegaremos a essa falsa sensação de abundância natalícia que tanto nos interessa.

As aves inocentes e porcos triturados acompanham a dupla cómica mais famosa do mar (Atum e Bonito), cujos cadáveres despedaçados repousam dentro destes divertidos caixões de farinha. A combinação destes alimentos, fritos com violência e irresponsabilidade, geram a sensação de "matança letal" pela qual que este prato é tão conhecido.

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Agora, vou proceder à apresentação dos aperitivos com os quais abriremos o festim natalício. Para além das azeitonas, snacks salgados, tostas com paté "ibérico" e enchidos, temos uns pratos especiais elaborados especialmente para a ocasião.

salmón ahumado de surimi

O FALSO SALMÃO FUMADO A.K.A “O MANTO DE CRISTO”

O salmão fumado é um clássico fodido dos jantares desta época festiva. São degustados por energúmenos de todo o lado, de várias formas e qualidades. Normalmente utiliza-se o salmão e a manteiga, mas como não me pude permitir a comprar nem salmão nem manteiga, tive que arranjar outra forma, afinal de contas um cozinheiro é alguém capaz de encontrar soluções brilhantes para problemas descomunais.

Este prato simples e, ao mesmo tempo, espetacular elabora-se ao desenrolar um palito de delícias do mar, para obtermos uma fina lâmina. Assim:

Cortamos a lâmina pela parte cor-de-laranja, para imitar a cor característica de resina suave deste peixe que cavalga os rios para pinar. Assim:

Posteriormente, polvilhamos com um bocadinho de endro da nossa despensa, para que se pareça mais com um filete de salmão. O endro é um grande amigo do cozinheiro low cost, a quantidade suficiente desta especiaria pode converter um produto de merda numa autêntica delícia. Não o subestimem. O endro veio para ficar.

Como toque final, acrescentem-lhe um fio de azeite, para lhe dar esse sabor acolchoado da manteiga e já está pronto. Empratem esta merda também com um fio de azeite, que fica sempre bem e, assim, as pessoas esquecem-se que isto é, basicamente, lixo.

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banderillas

“ESPETADAS GODARD”

Na verdade, não sabia que nome dar a estas espetadas, por isso, que diabos, a prepotência levou-me a fazer referência a um dos grandes da Nouvelle Vague, apesar de este movimento cinematográfico não ter nada a ver com o prato.

Aqui, aproveitei as azeitonas, restos de salsichas, restos de delicias do mar e a mozzarella fresca para fazer umas espetadas incomestíveis. São péssimas, mas ocupam espaço e aqui a graça está na surpresa de ter muitos pratos em cima da mesa. É melhor acrescentar quantidade do que qualidade. Pus esta folha de coentro que tinha no frigorífico para lhe dar um toque tão elegante quanto patético. Nós, os cozinheiros, fazemos isto de meter merdas que não servem para nada nos pratos, para lhes dar nível ou lá o que é.

mozzarella y pavo

“O ÚLTIMO ABRAÇO”

Este prato singular consiste numa fatia de peru braseado de 1 euro, a "abraçar" um pedaço de mozzarella fresca. Um pouco de endro em cima para dar menos pena e já está. O prato é uma merda tremendamente deprimente, porque queria simular a tristeza que sentem os amantes quando dão esse abraço que sabem que será o último.

A vida é isto: tentar justificar com teses rebuscadas as coisas que existem neste mundo. Toda a gente o faz, desde os críticos de cinema, aos ignorantes do Twitter. Gosto deste prato, encontrei-o um dia no lixo e não pude deixá-lo escapar. Vendo-o a três euros. Interessados enviem um e-mail a pol.rodellar@vice.com.

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3D snacks

“…E AÍ DESCANSAVAM AS SETE CABEÇAS CORTADAS DOS SETE ANÕES”

Este nome peculiar nomeia um prato que consiste em batatas fritas, dessas 3D bem baratinhas, marca branca, montadas com azeitonas. A comparação é clara, são as cabeças cortadas dos sete anões. As azeitonas são as cabeças e os 3D os chapéuzinhos. E é só isto, para dizer a verdade estava a ficar sem recursos.

Para além destes pratos, para fingir que havia muitas coisas na mesa, coloquei bandejas com palitos de delícias do mar, batatas e outras misturadas horrendas do que me sobrava. Há que ser resiliente e aproveitar ao máximo os poucos recursos de que dispomos, só assim chegaremos a estar em paz com nós mesmos e com a Mãe Terra.

chocolate

O TORRÃO

Para terminar, comprei uma barra de chocolate fondant de marca branca, da mais barata, para simular um torrão de chocolate. Para animar a coisa, acrescentei-lhe sal e azeite que, ao que parece, é uma combinação que se usa em certos círculos gastronómicos, os mesmos dessa gente que depois organiza orgias em que as pessoas "fazem amor" com os móveis do escritório.

No fim, a coisa nem ficou mal. Lamentavelmente, olhando agora em retrospectiva, a verdade é que parece um jantar de aniversário de uma criança de 10 anos mas, caraças, realmente a comida é indiferente, o importante é a companhia e celebrar o Natal com os entes queridos, não é?

Suponho que a moral da história é que não devemos preocupar-nos com estas refeições, nem temos que tentar aparentar ser o que não somos. Não é preciso sofrer. Afinal, porque é que gastamos tanto dinheiro nestas jantaradas? Se estamos apertados de dinheiro sentimo-nos obrigados a fazê-lo para evitar a recusa social que gera o degustar de coisas simples e baratas ou, simplesmente, jantar como um dia normal. Afinal é isso, todos os dias são normais e não é preciso celebrar nunca nada, com ninguém.


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