"Diário de um Detento" ainda é a melhor visão artística do massacre do Carandiru

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"Diário de um Detento" ainda é a melhor visão artística do massacre do Carandiru

Depois de 25 anos da tragédia acontecida no maior presídio do Brasil, a faixa dos Racionais segue descrevendo o dia-a-dia do sistema carcerário no país.

Cheiro de morte e Pinho Sol, rango azedo com pneumonia, sangue jorrando do ouvido, da boca e nariz, Adolf Hitler sorrindo no inferno, Fleury e sua gangue nadando numa piscina de sangue. A imagem que os Racionais MC's pintaram de maneira tão vívida em "Diário de um Detento" é tão grotesca quanto impossível de esquecer. A canção destrincha o dia-a-dia de um preso no sistema carcerário brasileiro, que pode ser o de um dia comum, de trabalho, sol e futebol, ou de um como o de 2 de outubro de 1992.

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25 anos depois do massacre do Carandiru, cujos mandantes continuam impunes e cujo número exato de mortes permanece desconhecido, "Diário de um Detento" ainda é a melhor manifestação artística da tragédia e seus antecedentes. Lançada em 1997, antes de outras grandes obras sobre o presídio — como Estação Carandiru, do Drauzio Varella (1999) e o filme Carandiru (2003) —, a faixa foi a primeira visão de dentro da cadeia a surgir nos anos seguintes ao massacre.

"Diário de um Detento" foi escrita pelo ex-presidiário Jocenir, sobrevivente da tragédia, e entregue nas mãos de Mano Brown dentro da casa de detenção, no Pavilhão Oito. "Ele me deu a letra num papel, meio desacreditado. Depois de um ano, eu voltei pra encontrar ele com a música estourada em todas as rádios. Ele saiu da prisão dias depois", lembrou o rapper durante uma entrevista à Red Bull em junho deste ano.

Definindo a perfeita química que formaria um detento do Carandiru, a faixa traça os diversos caminhos que levaram o massacre a acontecer: a falta de condições básicas de vida dos presos, o descaso da população, o abuso das autoridades do Estado, a violência incentivada pela extrema miséria. A letra descreve o começo da briga e a progressão à tragédia cronologicamente, usando de imagens gráficas para representar a passagem daqueles que morreram sem padre, sem repórter, sem arma e sem socorro.

Como parte do álbum Sobrevivendo no Inferno (1997), a primeira ponte musical entre o que era vivido na periferia paulistana e a percepção do restante da população, "Diário de um Detento" se encaixou na missão de dizer, pela visão dos sobreviventes ao inferno do Carandiru e do massacre, o que de fato tinha acontecido naquele 2 de outubro. Na mesma entrevista à Red Bull, Mano Brown fala sobre o peso das palavras proferidas naquele disco. "Rima é bala perdida", fala, salientando a violência que se tornou mais presente ao redor dos Racionais a partir do álbum. O jornalista André Caramante, que conduziu a entrevista e acompanha o trabalho dos Racionais há algumas décadas, diz ter ouvido boatos que supunham que os próprios membros do grupo eram presidiários no Carandiru.

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À época do lançamento do Sobrevivendo, o Racionais já era o maior grupo do hip-hop do Brasil, mas o reconhecimento do grupo (e do rap como um todo) ainda não havia atravessado maciçamente as pontes entre as periferias e as zonas nobres do País. Mas em 1998, o clipe de "Diário de um Detento" — apesar da longa duração e tema forte — teve altíssima rotatividade na finada MTV Brasil e catapultou os Racionais para o topo da cadeia fonográfica brasileira. No VMB do mesmo ano, os Racionais paparam os prêmios de Melhor Vídeo de Rap e Clipe do Ano e, ao receberem os prêmios, figuraram o que deve ser o maior momento da história da MTV por aqui, e se moscar de toda a TV brasileira.

A versão da história contada por Jocenir e os Racionais pode não ser a oficialmente aceita pelo sistema judiciário, mas é a mancha de sangue que permanentemente impregna os uniformes dos envolvidos nas (muito mais de) 111 mortes. "Mas quem vai acreditar no meu depoimento?"

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