Nicolelis explica os primeiros progressos na recuperação de paraplégicos
Conversamos com o neurocientista para sacar os resultados de seu novo estudo que sugere um avançado tipo de terapia com robótica e realidade virtual. Crédito: Felipe Larozza/ VICE

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Nicolelis explica os primeiros progressos na recuperação de paraplégicos

Conversamos com o neurocientista para sacar os resultados de seu novo estudo que sugere um avançado tipo de terapia com robótica e realidade virtual.

Em 2014, na abertura da Copa do Mundo no Brasil, um paciente paraplégico deu o primeiro chute do torneio com exoesqueleto controlado com uma interface cérebro-máquina (ICM). Apesar do pouco destaque dado na transmissão do evento, naquele mesmo ano o projeto o Andar de Novo, liderado pelo neurocientista Miguel Nicolelis, mostrava ao mundo que poderia recuperar parte dos movimentos das pernas de pessoas paraplégicas.

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Há um ano, Nicolelis declarou que estava "muito perto de fazer paraplégicos voltarem a andar", embora não tenha fornecido mais detalhes sobre como a pesquisa avançava em humanos. O artigo publicado na Scientific Reports, do grupo Nature, ontem, porém, acabou com parte do mistério. O texto diz que oito pacientes que haviam perdido os movimentos das pernas por lesões na coluna vertebral conseguiram, depois de treinar com os dispositivos cérebro-máquina, recuperar parte das sensações e controle muscular dos membros inferiores.

"Esta é a primeira descrição na história da área de lesões medulares em que pacientes diagnosticados clinicamente com paraplegia completa recuperaram níveis de sensibilidade, motricidade e função visceral vários anos depois da lesão, a ponto de conseguir controlar voluntariamente seus membros inferiores", contou Nicolelis ao Motherboard, por telefone.

A pesquisa relata a evolução de oito paraplégicos, alguns deles lesionados há mais de 10 anos. Ao longo de 2014, todos obtiveram melhoras significativas em suas respostas nervosas. "Depois de um ano ou um ano e meio, qualquer tipo de recuperação desta magnitude era considerada impossível" , afirmou Nicolelis. "O grau em que ela foi documentada mostra que existe uma possibilidade mesmo para os pacientes com estes diagnósticos de lesão clinicamente completa."

Todos eles recuperaram em algum nível a sensibilidade a toques, identificação de dores e percepção dos membros inferiores. Metade deles teve progresso maior: quatro deles descritos na escala ASIA como nível A ou B – que compreendem paralisia completa ou quase completa membros inferiores com perda da capacidade tátill, – foram reavaliados para o nível C, no qual a existe sensação tátil e controle muscular, mesmo que sem força para se sustentar em pé sem auxílio.

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O gráfico, extraído da pesquisa, mostra a divisão de horas e todas as atividades de neuroreabilitação nos treinamentos do projeto Andar de Novo. Crédito: Scientific Reports

Para atingir este resultado, o tratamento aliou diversas ferramentas como a ICM utilizando eletroencefalograma (EEG), óculos de realidade virtual, exoesqueletos e mecanismos de auxílio a locomoção. Também fizeram parte do programa centenas de horas de fisioterapia, neuro-reabilitação, acompanhamento psicológico, pesquisa e monitoramento médico.

Nicolelis explica que, caso existam nervos sobreviventes, é possível resgatá-los e fazer com que adquiram um grau de funcionalidade para os pacientes. A hipótese levantada pela pesquisa é que este fato possibilitou a recuperação parcial dos movimentos de metade dos membros do grupo.

Os procedimentos podem ter ativado uma reorganização plástica no córtex – área do cérebro que tem um papel complexo em funções diversas como consciência, linguagem, percepção e pensamento. Esta mudança pode ter sido causada pelo retorno da representação dos membros inferiores e da locomoção como atividades, tornando os pacientes capazes de transmitir algumas informações do córtex por meio dos nervos sobreviventes ao trauma original. Reativou, assim, a conexão entre pernas e cérebro.

O artigo recém-publicado atualiza também as questões da pesquisa relacionada a exoesqueletos e robótica. "Nosso problema vai ser construir outros tipos de vestes robóticas que levem em conta o fato de que os pacientes podem ter recuperações parciais", apontou Nicolelis. Sem a obrigação de atender a todas as necessidades em manter o equilíbrio, o controle de cada articulação e de cada componente mecânico, afirma, é possível baratear o custo de produção da parte mecânica. "Nós já estamos pensando numa outra geração de exoesqueletos que levem em conta o tipo de recuperação que a gente documentou."

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Apesar do otimismo que a divulgação do trabalho inspira, Nicolelis prefere manter os pés no chão sobre uma cura completa. "Eu não falaria em cura porque é prematuro, bem prematuro", diz. "Mas só de você ter uma terapia para uma molestia que até hoje não tinha terapia é um passo significativo."

Abaixo, a conversa completa com o pesquisador.

MOTHERBOARD: O que estas descobertas significam para a medicina e para o tratamento de pacientes com paralisia causada por lesões na medula?

Miguel Nicolelis: Esta é a primeira descrição na história da área de lesões medulares em que pacientes diagnosticados clinicamente com paraplegia completa recuperaram níveis de sensibilidade, motricidade e função visceral vários anos depois da lesão a ponto de conseguir controlar voluntariamente seus membros inferiores. Depois de um ano ou um ano e meio, qualquer tipo de recuperação desta magnitude era considerado impossível. O fato de que esta recuperação foi documentada em todos os pacientes, e no grau que ela foi documentada mostra que existe uma possibilidade mesmo, para os pacientes com estes diagnósticos de lesão clinicamente completa, de haver algum tipo de recuperação parcial neurológica. Porque o diagnóstico clínico não necessariamente implica em uma lesão anatômica completa. Nosso trabalho mostra que, se existem alguns nervos que sobreviveram, é capaz de talvez se resgatar esse nervos e fazer com que eles adquiram um grau de funcionalidade útil para os pacientes.

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Quais são os próximos passos da pesquisa?

Temos um outro trabalho que será publicado em 4 semanas, mais ou menos, que eu ainda não posso comentar. Mas nós temos outro estudo também, são mais três trabalhos, e um deles detalhando a recuperação de dezembro de 2014 até os dias de hoje. E isto eu posso adiantar, a recuperação já dobrou neste período. Mas eu não posso entrar em muitos detalhes porque o trabalho ainda está passando por revisão.

É possível ser otimista e falar em cura para paraplégicos e tetraplégicos?

Eu não falaria em cura, mas, quando criamos as interfaces cérebro-máquina(ICM) em 1999, achávamos que esta seria apenas uma tecnologia assistiva, para controlar próteses. O que a gente pode falar hoje com certa ênfase é que ela foi atualizada de tecnologia assistiva para uma potencial terapia de reabilitação. É um patamar bem mais alto. Agora eu não falaria em cura porque é prematuro, bem prematuro. Mas só de você ter uma terapia para uma moléstia que até hoje não tinha terapia é um passo significativo.

Você comentou em entrevista ao Motherboard no ano passado que o problema para fazer paraplégicos voltarem a andar estava muito mais ligado à engenharia. A parte da neurociência estava bem resolvida. Esses problemas persistem?

O limite neste momento das neuroproteses, por exemplo, principalmente as robóticas, está na robótica. Porque como você sabe melhor do que eu, as pessoas tem uma imagem da robótica que é da ficção científica de filme, né. Quando você começa a trabalhar com robótica pra valer, como a gente começou cinco anos atrás, você nota que existem muitas limitações na parte de controle, de software. Porque no nosso caso, por exemplo, você está falando de múltiplos graus de liberdade, de múltiplas articulações. Você tem um número muito grande de não-linearidades interagindo. Então, por exemplo, é só você mudar o terreno onde o robô está andando, isso já altera tudo. Esses limites estão muito mais ligados à engenharia eletrônica, engenharia de controle, do que da neurociência propriamente dita.

O que a robótica pode fazer com base nesse seu novo estudo?

Quando falei com vocês no ano passado, eu não podia dizer nada mas já sabia dessa recuperação. Eu tinha a noção de que, do ponto de vista da neurociência, a gente achou o procedimento mais optimizado que existe neste momento. Agora o nosso problema vai ser construir outros tipos de vestes robóticas que levem em conta o fato de que os pacientes podem ter recuperações parciais. Isso é bom porque reduz a demanda da complexidade dos robôs e consequentemente o custo. Porque se você tiver um robô que tem que fazer tudo para o paciente – como manter o equilíbrio, garantir a segurança, manter o controle de cada articulação, de cada componente mecânico – você tem uma demanda robótica muito maior e consequentemente um custo muito maior. Então nós já estamos pensando numa outra geração de exoesqueletos que levem em conta o tipo de recuperação que a gente documentou.

O conceito da BrainNet, também comentado na entrevista está chegou a ser aplicado nestes pacientes?

Nós temos uma coisa nesta área, mas eu ainda não posso comentar, mas logo logo nós vamos ter algumas surpresas.