A difícil missão de salvar os guepardos
Crédito: Derek Mead/Motherboard

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A difícil missão de salvar os guepardos

A rotina dos biólogos que quebram a cabeça para tentar reproduzir os gatos selvagens africanos.

Ao contrário de outros grandes felinos, os guepardos não rugem. Eles ronronam.

É uma vibração profunda que consegue ser tranquilizante e assustadora ao mesmo tempo. Foi esse misto de sensações que me invadiu quando escutei Nick, um guepardo macho de cinco anos de idade, a ronronar a centímetros de distância do meu rosto. É possível sentir a calma do animal sem esquecer de seu poder.

Era um dia frio e cinzento no estado da Virgínia, localizado a mais de 11.000 quilômetros do habitat natural do guepardo, as pradarias da África sub-sahariana. Enquanto Nick se arrastava pela cerca, minha visão era obscurecida por ripas de plástico entrelaçadas no arame.

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"É difícil fotografá-lo, ele fica sempre grudado na cerca", explicou Adrienne Crosier, bióloga e chefe do programa de reprodução de guepardos do Instituto de Biologia da Conservação Smithsoniano (SCBI, na sigla original) em Front Royal. Crosier conta que Nick, criado pelos seus cuidadores desde que nasceu, tem um apreço especial por humanos.

"Ele sempre vem ver os visitantes", disse ela enquanto Nick ronronava.

Nick nasceu e cresceu nas dependências do SCBI, onde 21 espécies ameaçadas de extinção são criadas e estudadas. O programa de reprodução de guepardos é um dos maiores sucessos da instituição. Nos últimos cinco anos, o SCBI foi responsável por trazer 34 filhotes de guepardo ao mundo, aumentando assim a quantidade de material científico disponível e contribuindo para nosso conhecimento da espécie. O objetivo agora é descobrir como readpatar esses guepardos à natureza.

Graças à sua característica nômade e à extensão de seus habitats, estudar os guepardos foi sempre uma tarefa difícil. Grande parte do que sabemos sobre a espécie — informações sobre sua saúde, fertilidade, endocrinologia e material genético — vem de pesquisas feitas com animais criados em cativeiro.

Alguns conservacionistas, entretanto, questionam a eficácia dessa estratégia de preservação. Tendo em vista o baixo número de guepardos na natureza (cerca de 10.000, segundo estimativas) e ameaças como a destruição de habitats, conflitos com fazendeiros e tráfico de animais exóticos, será que essa é a forma mais eficaz de proteger esses felinos? Como um guepardo domesticado na Virgínia pode ajudar seus irmãos ameaçados de extinção na África?

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O SCBI ocupa uma área de 3.200 acres nos verdejantes montes Shenandoah, localizados na Virgínia. A área já abrigou um posto da cavalaria do Exército americano; os morros ainda são cobertos por túmulos de cavalos. Alguns dos 301 animais do Instituto — que vão de pandas vermelhos a grous-de-pescoço-branco — serão entregues ao Zoológico Nacional em Washington ou a outros zoológicos dos EUA. No entanto, a unidade de reprodução não está aberta ao público. O foco do Instituto é a conservação de espécies ameaçadas. Todos os animais criados por lá estão ou ameaçados de extinção, como o cavalo-de-przewalski, ou já extintos.

A vista de um dos morros do Instituto da Biologia de Conservação Smithsoniano Crédito: Derek Mead/Motherboard

Embora o SCBI tenha sido inaugurado nos anos 70, o programa de reprodução de guepardos é relativamente novo. O programa é também uma das paixões de Dave Wildt, um biólogo que estuda guepardos há mais de 30 anos e trabalha como chefe dos programas de conservação de espécies do SCBI. Wildt começou a carreira estudando guepardos, em cativeiro e na natureza, por toda a África subsaariana.

"Foi uma ótima experiência; corríamos pelo Serengeti capturando guepardos selvagens e coletando amostras de esperma e sangue para estudos genéticos", relembra Wildt, enquanto conversamos em seu escritório, cujas paredes são cobertas por fotos de filhotinhos de guepardo.

Durante sua temporada na África, Wildt e seus colegas fizeram descobertas importantes sobre a espécie, como o fato dos guepardos terem sofrido diversos gargalos populacionais, responsáveis pela atual falta de diversidade genética da espécie. A pesquisa também revelou nossa profunda falta de conhecimento em relação à espécie, o que explica por que tantos zoológicos e grupos de pesquisa têm falhado em cruzar espécimes em cativeiro.

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Durante décadas, zoológicos da América do Norte importaram guepardos de países como a África do Sul, em parte porque eles não sabiam como cruzá-los de modo adequado. Na época, Wildt reconheceu os possíveis benefícios de estudar animais em cativeiro e logo teve a ideia de criar um centro de preservação de guepardos nos EUA.

"Todos diziam que o Instituto seria o lugar perfeito para um centro de preservação de guepardos, mas não tínhamos dinheiro para construí-lo", me contou Wildt.

Em 2004, o tão sonhado programa de reprodução de guepardos começou a se concretizar. Um doador anônimo doou o capital necessário para iniciar a construção e, em 2007, os primeiros dois guepardos chegaram ao local. Infelizmente, graças à escassez de guepardos domesticados, eles só conseguiram duas fêmeas.

"Um programa de reprodução de meia-tigela", ri Wildt.

Crédito: Derek Mead/Motherboard

Desde sua inauguração, o centro é comandado por Crosier, que havia acabado de voltar de um período de três anos de estudo sobre guepardos na Namíbia. Com apenas duas fêmeas disponíveis, ela e sua equipe passaram os primeiros dois anos coletando várias informações sobre os felinos. Os primeiros machos chegaram em 2009 e, em 2010, o centro de reprodução teve suas primeiras ninhadas.

Além de ajudar na conservação da espécie, o programa tinha alguns objetivos mais urgentes. O SCBI queria criar um centro de reprodução que garantisse o fornecimento constante de guepardos para os zoológicos da América do Norte, eliminando assim o número de importações da África. Segundo os cálculos de Crosier, caso eles não produzissem 35 filhotes anualmente, todos os guepardos do continente desapareceriam nos próximos 100 anos. Sua equipe precisava aprender a cruzar guepardos de forma efetiva e consistente.

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Sua equipe estava, portanto, diante de um grande dilema: eles precisavam cruzar guepardos para coletar mais informações sobre a espécie, mas a falta de informações sobre a espécie impedia que eles cruzassem esses mesmos guepardos.

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Os guepardos, única espécie do gênero Acinonyx, diferem em quase todos aspectos do resto dos grandes felinos, seja em comportamento, sistema social ou biologia. Essas diferenças vão muito além da ausência de rugidos e são elas que dificultam tanto o cruzamento dos animais.

"Os desafios são infinitos", disse Crosier, soltando um longo suspiro.

A ovulação dos guepardos, assim com a dos gatos domésticos, só ocorre por indução: em outras palavras, eles só ovulam após o cruzamento. Quando os óvulos e os folículos da fêmea estão prontos para serem liberados, os hormônios informam o corpo que aquele é o momento ideal para cruzar. O nome desse fenômeno é estro, mais popularmente conhecido como cio.

Se você já viu um gato no cio, é provável que você conheça todos os sinais: os miados, as costas arqueadas, o impulso de rolar no chão. Nada muito sutil, convenhamos. Mas um dos maiores problemas do cruzamento de guepardos é o fato das fêmeas não exibirem nenhum comportamento comumente associado ao cio. Os testes ainda não conseguem detectar os hormônios do estro na urina ou nas fezes dos felinos e, como seus sistemas reprodutivos não possuem um ciclo regular, é impossível prever quando uma fêmea esterá pronta para cruzar.

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Adrienne Crosier, chefe do programa de reprodução de guepardos do SCBI, perto da área dos guepardos. Crédito: Derek Mead/Motherboard

Para resolver esse problema, os pesquisadores contam com a ajuda dos únicos seres tão interessados na ovulação das fêmeas quanto eles: guepardos machos.

"Nós dependemos muito dos machos; são eles que nos dizem, literalmente, se uma fêmea está ou não pronta para cruzar", disse Crosier.

Para testar se uma fêmea está no cio, os pesquisadores a retiram de sua jaula e colocam um macho lá. Caso a fêmea esteja no cio, o macho emitirá um som — uma espécie de latido — para tentar chamá-la. Isso indica que a fêmea está pronta para cruzar.

O ciclo fértil do guepardo, no entanto, é apenas o primeiro de vários desafios. Para manter a diversidade genética da população de guepardos espalhada pelos zoológicos da América do Norte, os casais são escolhidos com base em seus DNAs. Essa estratégia seria perfeita caso os felinos cruzassem com qualquer um — mas é claro que nem tudo é tão simples. Às vezes a fêmea se recusa a cruzar e reage agressivamente às investidas do macho. Outras vezes, os machos não gostam das fêmeas escolhidas e as atacam.

Tudo isso acontece graças à estrutura social única dos guepardos. Fêmeas adultas preferem ficar sozinhas. Elas ocupam grandes territórios onde vivem e caçam independentemente. Os machos, por sua vez, costumam viver em grupos de dois ou mais indivíduos conhecidos como coligações. Esses grupos são, em sua maioria, compostos por irmãos que passarão a vida juntos. Entretanto, as ninhadas de guepardos costumam ter três filhotes, o que significa que machos solitários (machos expulsos por suas irmãs quando chegam à fase adulta) costumam se unir para formar suas próprias coligações.

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"É como se eles precisassem dessa proximidade com outros machos", disse Crosier. "Isso é algo muito raro e curioso, em todos os níveis."

Graças à essa estrutura social única, os guepardos são muito seletivos na hora de escolher quem pode ou não invadir seu espaço. Alojar os felinos é quase um malabarismo — alguns vizinhos não se dão bem e rosnam um para o outro o dia inteiro, cada um do seu lado da cerca— e dar uma de cupido é mais difícil ainda.

Para proteger ambos animais, os primeiros encontros entre casais em potencial acontecem sempre através de uma grade, conta Crosier. Caso eles se dêem bem, os pesquisadores organizam um encontro mais íntimo, mas, assim como nos relacionamentos humanos, nem sempre as coisa dão certo. Apesar disso, os pesquisadores apelidaram o corredor que separa os machos das fêmeas de "paraíso dos amantes".

Irmãos, como esses dois machos, ficam juntos por toda a vida. Crédito: Derek Mead/Motherboard

Apesar dos obstáculos, a equipe do SCBI vêm, nos últimos sete anos, aperfeiçoando sua técnica de reprodução e aprendendo muito sobre a espécie. Além de produzir nove ninhadas, eles aperfeiçoaram um projeto que envolve fêmeas cuidando de filhotes abandonados (como as fêmeas precisam de muito estímulo para produzir leite, ninhadas de um só filhote são muitas vezes abandonadas). Embora parte do objetivo seja criar uma população capaz de abastecer os zoológicos da América do Norte, Crosier diz que sua maior meta é aprender mais sobre a espécie, o que ajudaria a preservá-la.

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"Grande parte do nosso dinheiro é destinado para o estudo do habitat natural dos guepardos, de forma a saber onde esses felinos vivem e tentar mitigar conflitos com fazendeiros, diminuindo assim o número de guepardos mortos ou feridos", disse Crosier. "Quanto mais sabemos sobre uma espécie, melhor cuidamos dela, seja em um santuário na América do Norte ou nas pradarias do Serengeti."

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A equipe do SCBI aperfeiçoou as técnicas de cruzamento da espécie, o que eles acreditam ser um grande passo para a conservação. Entretanto, alguns conservacionistas afirmam que essa não é a melhor abordagem; segundo eles, criar guepardos em cativeiro só piora a situação.

"Você pode até criar guepardos em cativeiro, mas isso não tem um impacto positivo na preservação da espécie", disse Adam Roberts, presidente da Born Free USA, um grupo de direitos dos animais cujo foco é proteger espécies selvagens em seus habitats naturais. "Não há nenhuma relação entre esses programas e a proteção dessas espécies".

Roberts disse que, apesar do avanço das técnicas de reprodução assistida, os guepardos ainda estão em perigo. A espécie é definida como ameaçada pela Lista Vermelha da União Internacional para a Conservação da Natureza e dos Recursos Naturais; comprometida segundo a Lei de Espécies Ameaças dos EUA e listada no Apêndice I da Convenção sobre o Comércio Internacional das Espécies da Fauna e da Flora Silvestres Ameaçadas de Extinção, seção destinadas às espécies mais ameaçadas.

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Roberts afirma que a maior ameaça contra a espécie é o tráfico de guepardos no mercado negro.

Ter um guepardo de estimação se tornou um símbolo de status em várias partes do mundo (em especial no Oriente Médio), e em alguns lugares, conseguir um filhote da espécie é "tão fácil quanto comprar um cupcake". Graças ao Instagram, onde guepardos são exibidos como acessórios de luxo, o mercado de grandes felinos está crescendo, afirma Roberts. Ele afirma que os programas de reprodução assistida não só não contribuem para a preservação da espécie — eles também fazem parte do problema.

"A reprodução em cativeiro protege o comércio ilegal", disse Roberts. "Existem pessoas na África do Sul criando guepardos para abastecer o mercado de zoológicos. Isso cria uma ótima oportunidade comercial, já que esses guepardos, assim como os espécimes selvagens capturados na África, também são comercializados. Enquanto esse comércio internacional existir, nossos esforços de conservação serão inúteis".

Ashaki, um macho de quatro anos de idade, fazendo um lanchinho no SCBI. Crédito: Derek Mead/Motherboard

Um dos principais motivos por trás da criação do projeto de reprodução do SCBI é criar uma população de guepardos grande o suficiente para abastecer os zoológicos da América do Norte, diminuindo assim o comércio ilegal — coisa que ainda não acontece. Roberts questiona a eficácia de criar animais em cativeiro quando a população selvagem da espécie continua a ser dizimada.

"Se o objetivo é estudar os guepardos, isso deveria ser feito na natureza", disse Roberts. "Eles devem ser estudados em seus habitats naturais".

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Existem diferentes formas de ajudar a preservar uma espécie, mas é difícil negar a diferença entre os resultados concretos dos esforços de preservação das populações selvagens e os benefícios sutis dos estudos feitos em cativeiro.

Na Namíbia, onde Crosier trabalhou para o Instituto Smithsoniano e para o Fundo de Conservação dos Guepardos, os conservacionistas escolheram uma abordagem mais direta. Muitos fazendeiros da Namíbia matam guepardos para proteger seus rebanhos. Essa prática, comum em todo o país, ameaçava a população de guepardos local, o que inspirou o CCF a buscar soluções alternativas. Para solucionar o problema, os agentes ensinaram alguma técnicas de agropecuária consciente para os fazendeiros, como prender os guepardos e ligar para o CCF ao invés de matar os animais. Eles também forneceram cães de guarda para ajudá-los a proteger seus terrenos dos guepardos. Essas técnicas não foram desenvolvidas num laboratório, mas sim no campo, por agentes dispostos a identificar a raiz do problema e buscar soluções práticas — segundo Roberts um uso mais eficiente de recursos.

Ainda assim, é difícil desmerecer o trabalho do SCBI. A instituição pode não ter a abordagem prática do CCF, mas sua equipe também luta para conservar a espécie. Não é necessário fazer uma cisão entre as iniciativas de conservação "práticas" e "teóricas"— há espaço para diferentes táticas. E quando o desafio em questão é a preservação de uma das espécies mais únicas da Terra, nós precisamos de toda ajuda disponível.

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O campo da conservação é cheio de controvérsias. Nós nem sempre sabemos qual é o melhor caminho, e quando o que está em jogo é a obliteração total de uma espécie, os ânimos tendem a se acirrar. A estratégia do SCBI tem algumas vantagens, uma delas sendo o fato de que, caso os esforços para proteger os guepardos não tenham sucesso, a espécie não desaparecerá completamente. No entanto, se nós não aprendermos a cruzar esses animais, a espécie estará fadada à extinção.

Não há uma solução óbvia para esse problema, e é por isso que pesquisadores como Crosier e Wildt insistem em continuar suas pesquisas. O SCBI criou, recentemente, uma associação que une sete outros centros de reprodução de guepardos da América do Norte para compartilhar informações e estratégias. Os representantes de cada centro se reúnem mensalmente. Crosier acredita que em breve a associação será capaz de produzir uma ninhada através da fertilização in vitro, um fato inédito para a espécie. Em outras palavras, eles estão progredindo.

É estranho ver esses animais em outro lugar que não um zoológico. Sem o cenário falso que imita a fauna do Serengeti, suas jaulas — compostas apenas por uma grade e um pouco de grama — me lembraram mais um canil do que o habitat de um guepardo. Mas eu também pude sentir o carinho que a equipe tem por esses animais. Eles são capazes de olhar uma foto e dizer qual é o nome e a data de nascimento de cada animal. Eles sabem de quem cada guepardo gosta, e quem eles não suportam. Eles sabem quando o irmão de Ashaki morreu, e por quantos dias ele se recusou a comer depois de sua morte.

E os guepardos? Para mim, eles parecem bem contentes. Isso aqui pode não ser o Serengeti, mas pelo menos eles estão saudáveis. E mais importante — eles estão ronronando.

Tradução: Ananda Pieratti