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Egipto, retrato de um país que continua a lutar pela liberdade

Faz hoje três anos que Mubarak caiu.

CAIRO, 26 DE JULHO DE 2013

Em Julho de 2013 escolhi ir para um Egipto que, inspirado pela primavera árabe, se encontrava em pleno estado de sítio. Um Egípto onde milhões reclamaram por democracia após 30 anos de regime militar. E esses que manifestavam tinham conseguido o seu objectivo. Derrubaram o ditador que se perpetuava no poder. As eleições foram convocadas e as suas demandas tinham sido ouvidas. Iniciava-se então um inédito caminho para a democratização no Egipto.

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Mohamed Morsi da irmandade muçulmana foi dado como vencedor.

As eleições que se realizaram deram o poder ao primeiro civil a presidir os destinos do país que se unia assim em torno de um presidente que, pela primeira vez, tinha sido eleito pela vontade popular.

Um ano mais tarde, essa união tinha terminado e os egípcios sentiam-se enganados. Acusavam o presidente de ter como prioridade implantar um estado islâmico no país ao invés de resolver os problemas que preocupavam a população. O sentimento geral era o de que o país estava bastante pior do que no tempo da ditadura.

Confrontados com uma grave crise económica, uma queda nas receitas do turismo, um aumento da desigualdade e um aumento do fundamentalismo religioso, a população voltou às ruas em massa para pedir eleições antecipadas.

O objectivo passava pela destituição de Morsi. Estávamos no final de Junho de 2013 e o exército lançara um ultimato ao presidente do país. Ou Morsi aceitava as demandas populares ou então as forças armadas teriam de intervir.

Morsi não cedeu, e em Julho deste ano, o exército pôs fim ao primeiro governo considerado democraticamente eleito.

Uma onda de felicidade invadiu os corações da maioria da população, traída pelas intenções da irmandade, mas os afectos ao presidente deposto reagem com fúria ao que chamam de golpe militar. Sentem que Morsi é o legítimo presidente do país.

Começa aí então uma nova onda de violência no país. E é no meio desta clivagem social e política que eu chego ao Egípto. Cedo vejo a influência militar nas rotinas diárias de milhões de pessoas, check points militares, tanques, AK's-47 e soldados fazem parte da paisagem da cidade. Para além disso, vivia-se o mês do Ramadão.

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Para um europeu, o contraste civilizacional enorme: programar uma rotina, tentar conciliá-la com o forte aparelho militar e os costumes do Ramadão não era tarefa fácil. Mas o espirito da população era indiferente a todas essas complicações. O que pude ver foi uma enorme vontade de desfrutar de todos os momentos, uma intensidade que não conhecia.

Imbuído nesse espírito, parti em busca do verdadeiro Egipto. Desde as águas límpidas do mar vermelho, até ao deserto branco perto da Líbia. Pelo caminho tatuei na pele a palavra que todos me gritavam, "Liberdade!" Essa mesma liberdade que nós tomamos por garantida, eles nunca a tiveram em pleno. Ora presos pelas amarras da religião, ora presos pelo controlo militar. E foi pela liberdade que eles estiveram na praça Tahrir, tanto em 2011 como em 2013.

Foram tempos em que vivi momentos fantásticos, desde de me gritarem pelo Cristiano Ronaldo em plena praça Tahrir, até ao adormecer no deserto sobre o céu mais estrelado que alguma vez olhei.

14 DE AGOSTO

Corria o dia 14 de agosto, era mais um dia normal de trabalho, preparava-me de manhã para enfrentar o trânsito caótico do Cairo. Só que esse dia estava destinado a ser diferente. O exército estava decidido a remover os acampamentos em que a irmandade muçulmana protestava há já mais de um mês. De um modo voluntário, ou caso fosse preciso, usando a força. Escusado será dizer que escolheram a segunda opção.

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O clima de guerra instalou-se, o exército atacava com tudo. A correlação de forças era completamente desigual e, em poucas horas, já não havia acampamentos. A irmandade sedenta de retaliação agrupa-se em outras zonas da cidade para, combaterem os que desafiam a legitimidade do presidente deposto e, vingarem os seus irmãos que morriam às mãos do exército.

A irmandade agrupou-se precisamente na rua onde eu, na altura, morava.

Nesses momentos fiquei a saber o que era o caos, o momento em que uma cidade rompe. O Egipto não tolerava mais a irmandade muçulmana.

Carros em chamas, tiroteio intenso durante horas, artilharia militar, tanques e helicópteros povoavam uma avenida que horas antes era uma vibrante artéria, cheia de vida e comércio.

O sentimento de impotência apoderava-se do meu corpo. Não existia nada a fazer se não estar refém em casa dependente das ordens do governo ou dos fanáticos religiosos. Durante esse dia foi decretado o recolher obrigatório, e declarado estado de emergência.

A batalha decorreu ao longo de todo o dia. Os cortes de electricidade eram permanentes. A escassez de água e comida era notória.

A contagem final das mortes ainda hoje está por fazer. Os dados que conhecemos são contraditórios. O Ministério da Saúde do Egipto, 631 pessoas a perderam a vida nos confrontos. A irmandade muçulmana garanta que falamos de cerca de 2200 mortes.

16 DE AGOSTO — DIA DE RAIVA

De forma a vingar o sangue derramado

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 pela

 irmandade muçulmana, é convocado um "Dia de Raiva".

Nesta altura, como seria de esperar, preocupação e ansiedade são sentimentos generalizados.

Teme-se uma repetição dos eventos de há dois dias.

O rasto de destruição era grande. Vidros partidos, barricadas feitas de calçada do chão e, muitas vezes, sangue.

Apesar disso o "Dia de Raiva" aproximava-se. Depois da oração do meio-dia, aqueles que contestavam o novo regime militar sairiam de vários pontos da cidade em direcção à praça Ramses.

Os confrontos mantêm-se e os cidadãos saem à rua para proteger os seus bairros. Vigilantes civis. Outra variável a ter em conta neste já de si complexo confronto.

Com o decorrer dos acontecimentos percebo que ficar no Egípto não era suficientemente seguro para mim. Peço auxílio à embaixada para que me ajude no regresso a casa, achei que seria o normal procedimento a adoptar. Pois bem, enganei-me. A embaixada estava fechada para fim-de-semana.

Depois de ter revelado a minha desilusão com os serviços diplomáticos portugueses a alguns jornais portugueses (que preferiram não publicar), leio que o Secretário de Estado das Comunidades afirmava que não se encontravam turistas no Cairo e ninguém tinha solicitado ajuda para sair, apesar de ter conhecimento do oposto.

Em poucos dias resolvi a minha situação, embarcava para Portugal quando julgava que a minha estada ia durar. Senti-me arrancado de uma realidade que tomava como minha. A preocupação com o país é algo que se mantem, o regime militar hoje, assemelha-se à ditadura que vigorava antes de 2011. A luta pela liberdade continua a ser travada. A censura impera, mas a ilusão da democracia teima em manter-se. Se há coisa que a Primavera Árabe nos mostrou foi que, num instante, tudo muda.