Opinião

Portugal, o país das rendas altas e dos salários baixos

Porto, a cidade das casas montadas para os turistas, com toalhas brancas em cima da cama e bilhetes de boas-vindas com a senha do Wi-Fi.
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A minha casa tinha quadros. Tantos que nem sei quantos. Mesmo depois de meses, vez ou outra eu ainda descobria um que não me tinha chamado os olhos. Foi um dos motivos que me fez apaixonar por aquela casa. Saí do Brasil, cheguei ao Porto e um dos quartos que visitei para arrendar era deste artista, chamado Filipe Garcia. Aceitei logo. Era como morar numa galeria - para onde quer que olhasse, havia inspiração.

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Não sei dizer quantas vezes me sentei no sofá e ouvi histórias que aquela sala tinha vivido. 15 anos esteve ele ali. Nesse período muita gente lá morou, muitas nacionalidades. O tempo é o que cria as coisas, é no tempo que vivemos, é ele que traz as histórias, os avanços e as linhas. Quantas vezes não fiquei naquela mesma sala e ela se mostrou nova para mim? Os mesmos quadros, mas que pareciam diferentes, que surgiam de novas maneiras. É o tempo que possibilita isso.

Até que nos deram até Março. Uma data limite e um limite de tempo. Aos poucos, a casa foi-se desfazendo, os quadros foram sumindo, embalados e levados para outros cantos. O montar e o desmontar fazem parte, mas a casa foi perdendo as suas histórias, quadros de pessoas e lembranças.

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Fotografias da ex-casa da autora, facultadas pela própria.

Depois de partirmos, o prédio será vendido. A vida vai saindo para entrar o dinheiro. Isso já está a virar rotina por aqui. De acordo com o relatório Europe's Housing Market Inflation Is Losing Pace, Portugal é o país da Europa Ocidental em que mais se sobe o valor das casas, entre os analisados. Em 2020, segundo a Standard & Poor's, a previsão é de que os preços subam 6,2%. Por outro lado, a inflação não acompanha o mesmo ritmo, em 2019 foi de apenas 0,3%. As rendas que mais sobem, versus um dos salários mais baixos da Europa.

O resultado dá-se em tensões. Os últimos dados publicados pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) apontam que o número de pessoas em situação de sem-abrigo em Portugal aumentou 157 por cento entre os anos de 2014 e 2018. O que contrasta com os prédios que, tal como o meu, são esvaziados para serem vendidos, mas, na realidade, passam de mão em mão, agregando valor de mercado mas continuando vazios. Abandonados.

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Com o turismo, veio também uma pressão imobiliária ainda mais cruel. Regiões como a Ribeira e a Baixa, que sempre foram do povo, entraram em evidência. Com as rendas cada vez mais altas e os salários muito baixos, famílias que moraram a vida toda, gerações até, no mesmo lugar são forçadas a mudar. E essas casas, tão grandes em anos e vivência, conhecem o seu fim.

Enquanto isso, mais um Airbnb. Mais dois, mais três. E sim, eles trazem muita gente, muitas outras culturas. Mas a memória vai ser curta. E permito-me a dizer que nem sequer vão haver memórias. Quando não passamos tempo num lugar, as lembranças não ficam - vão com as pessoas. A casa já não vai fazer parte dessas lembranças, as memórias não vão ser vividas por ela, somente observadas desde fora.

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Fotografias da ex-casa da autora, facultadas pela própria.

O Porto, essa cidade que conheci há alguns anos e que me conquistou por me mostrar a sua alma, está a limitar-se a ser caminho, transição, uma cidade de pessoas que passam mas não ficam. Gente que vem para dormir e acorda cedo no dia seguinte porque tem de apanhar o comboio, ou partir para passear por outras ruas e fachadas. Fachadas que mantêm a sua história, em casas que perdem o seu histórico.

As casas estão a transformar-se em meros quartos. Pode até haver quadros na parede, decorações temáticas que parecem saídas de um catálogo. Tudo para acabar em 15 segundos de uma história de Instagram. O tempo vai faltar. O tempo, que transforma, que cria, que fundamenta, não vai estar mais ali.

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A casa que conheci já não existe, foi despejada. Os quadros foram-se. Ficaram os pregos nas paredes e as molduras de poeira, a moldura do tempo. As mudanças são transgressoras, sobretudo as mudanças impostas. E para mim é muito mais fácil, reconheço. Enquanto os quadros que aprendi a ver e a rever vão para outro lugar, eu também vou. Criar uma nova casa. Colocar quadros na parede, pregar, marcar e pintar. O que espero é que, desta vez, haja mais tempo; que as memórias lentas não sejam interrompidas por alguém que só está preocupado em encher de turistas casas montadas, com toalhas brancas em cima da cama e bilhetes de boas-vindas com a senha do Wi-Fi.

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Fotografias da ex-casa da autora, facultadas pela própria.


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