O Boa Noite Cinderela e o consumo de drogas em São Paulo
Foto por Wilomore Oliveira/VICE, publicada originalmente aqui.

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reportagem

O Boa Noite Cinderela e o consumo de drogas em São Paulo

O golpe mais antigo das casas noturnas encontra meios de sobrevivência através do uso recreativo de drogas em festas.

* Colaboraram Amanda Cavalcanti e Débora Lopes.

O golpe Boa Noite Cinderela – o truque 171 de fazer uma pessoa ingerir algum tipo de substância que a deixe sem memória para roubá-la – até poucos anos atrás era considerado, em São Paulo, algo restrito a baladas LGBT e casos de estupro em que o agressor dopa a vítima para facilitar o abuso. No entanto, o crime começou a aumentar em frequência e também se alastrar para festas hétero a partir do boom de consumo da cetamina (também conhecida como “ketamina” ou apenas “keta”) e outras drogas sintéticas. O caso que mais chamou a atenção midiática recente foi o desaparecimento do produtor carioca Mateus Pagalidis de 26 anos, encontrado morto em 5 de setembro na Zona Norte de São Paulo. Antes de desaparecer, Mateus disse ter sido vítima do golpe, mas as investigações, no entanto, ainda não foram concluídas.

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Em um levantamento solicitado por meio da Lei de Acesso à Informação, a VICE recebeu dados de 415 Boletins de Ocorrência registrados na capital paulista citando o termo “Boa Noite Cinderela” entre 2014 e o segundo semestre de 2017. A maioria dos crimes denunciados é de furtos e roubos contra homens, normalmente na região central. O número dos golpes aplicados pode ser ainda maior, considerando que muitas vítimas não prestam queixa na delegacia. Conversamos com 14 vítimas diferentes do golpe. Entre elas, apenas uma prestou queixa na polícia e foi devidamente orientada a procurar o IML para fazer o exame toxicológico. Dois outros disseram também ter procurado as autoridades, com resultados diversos: um relatou que encontrou a delegacia fechada e outro afirmou ter sido destratado e tratado como um “noia qualquer” pela polícia quando acordou em um galpão abandonado no bairro do Pari.

Desde que as festas de rua que ocupam o centro da cidade começaram a fazer sucesso, o golpe ganhou mais espaço. Após os relatos ficarem cada vez mais comuns, alguns produtores de festas começaram a conscientizar o público para tomar cuidado com o golpe. Uma das festas, a Tenda, foi talvez a primeira a repassar dicas aos frequentadores para que eles fiquem espertos ao aceitar bebidas de estranhos e também para prestarem atenção ao próprio drink. A Tenda costuma ser realizada na rua Bento Freitas, no Centro de São Paulo, uma das regiões onde mais se concentram relatos do Boa Noite Cinderela.

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“A gente lembra de três ou quatro casos no segundo semestre do ano passado”, conta Guilherme Falcão, designer e um dos organizadores da Tenda. “Por outro lado, percebo que esses golpes chegaram menos na gente, mas a gente soube de outras festas que acontecem na Bento que saíram da rua porque não se sentiram mais seguros. A gente mesmo não ficou sabendo de nenhum caso esse ano, mas sempre soubemos que isso sempre rolava na The Week, por exemplo. Mas por estarmos no Centro, estamos mais expostos.”

Embora seja mais fácil culpar as festas em si, Falcão alerta para a dificuldade de controlar a ocorrência do crime, já que muitas vezes são cometidos na rua e vem ao conhecimento dos organizadores muito tempo depois. “A gente não pode proibir pessoas de entrar numa festa sem uma suspeita concreta, e tem coisas que acontecem fora de nossa alçada”, explica.

A mesma preocupação e falta de meios para agir também frustra Suzana Haddad, produtora, parte do casal Belalugosi e organizadora da festa Vampire Haus ao lado de Anderson Loki. “Um lance que percebemos é que o Boa Noite Cinderela não é algo que deveria ser associado às festas. Se a gente observar é uma cosia que acontece fora delas, com pessoas estranhas, e o pessoal que não sabe ao certo de tudo que está ingerindo. Não vi nenhum caso desses na Vampire Haus. Fizemos um festival de três dias de 52 horas em uma fábrica e não teve nenhuma ocorrência, nem no ambulatório.”

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“Existe uma hipocrisia pra falar de droga,” explica Guilherme. “Você sabe que a pessoa faz uso recreativo de droga e precisa ter um ambiente responsável. Tem a questão de festas de longa duração, que precisam oferecer água mais barata também. A gente tenta alertar, fazer campanha. Um outro produtor de festa levantou a hipótese de pedir para as pessoas se manifestarem ou ajudarem ao ver alguém passando mal.”

O jeito para os produtores é alertar os frequentadores para cuidarem de si mesmos, do drink que estão tomando às substâncias que estão ingerindo. No entanto, a escolha pessoal extrapola o alerta dos produtores e entra em uma questão mais complicada: o consumo de drogas na noite paulistana.

O golpe

A maioria dos relatos são parecidos quando as vítimas são homens. Descrevem ser abordados por homens atraentes que estão em busca de uma paquera. Passam algumas horas conversando até que aceitam uma cerveja ou um drink do estranho. Depois é blecaute. As vítimas acordam horas depois, sozinhos e sem itens de valor. Os que dão mais “sorte” perdem só o celular e a carteira, já outros descobrem no dia seguinte que tiveram suas contas bancárias e cartões de crédito saqueados.

Thiago* relata ter sofrido uma abordagem parecida na frente do L’Amour, boate na famigerada Bento Freitas. Estava papeando com um homem “bonitão e com pinta de michê” na porta da casa noturna e acordou horas depois, todo vomitado, na Praça da República. Além de sua mochila o seu laptop terem sido levados, também saiu com um prejuízo de R$ 35 mil no cartão de crédito e R$ 5 mil do cartão de débito. Os saques foram feitos durante a madrugada em maquininhas de cartão registradas com CNPJs de empresas-fantasma.

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O jovem lembra da sensação de desespero quando acordou sem nada no bolso. Foi a pé até a delegacia de Polícia Civil na Rua Marquês de Paranaguá, não muito distante de onde recobrou os sentidos, mas ela estava fechada. Era um domingo de manhã.

Foi aos poucos que descobriu o prejuízo de R$ 40 mil no banco. A partir daí, foi outra dor de cabeça para conseguir o ressarcimento do valor. “O banco me cobrou e eu não tinha nenhuma prova. Ninguém me viu naquela noite saindo com o cara e era a minha palavra contra a do banco”, relembra.

Foi na delegacia, 36 horas depois de tomar o golpe, que o aconselharam de fazer um exame no Instituto de Medicina Legal (IML). Foram três meses de espera até o exame de urina acusar a presença de cetamina.

“O exame foi a minha primeira prova para conseguir rever aquele valor”, conta. “A médica me disse que me deram muita cetamina, a ponto de aparecer no exame de sangue, já que ela some depois de 12 horas no organismo”. Graças ao laudo do IML, Thiago pôde provar o golpe e ganhou o processo do seu banco. Porém, foram meses de desconfiança e trauma.

“Quando comecei a ouvir outras histórias, vi que eram sempre as mesmas. Tudo no centro também. Todos eram homens gays e relatavam ter sido vítimas de homens de perfil parecido, bonitões e com pinta de michê.”

Além dos criminosos que se aproveitam da paquera e a falta de atenção da vítima, novos golpes do Boa Noite Cinderela começaram a se aproveitar do consumo de substâncias ilícitas para dopar a pessoa.

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Foto por Larissa Zaidan/VICE.

“A sensação era de morte em loop”

“Foi uma noite louca em julho do ano passado”, me diz Ofélia* sobre sua experiência com o golpe. “Estava com um amigo meu, cheirando pó como dois super-heróis achando que nada iria acontecer. Estávamos Largo do Arouche, na porta de uma festa, e uma menina se aproximou perguntando se queríamos comprar cocaína. Ela ofereceu uma carreira pra gente experimentar e fomos até uma rua deserta para fazer.”

Assim que Ofélia e se seu amigo cheiraram a carreira oferecida pela desconhecida perceberam que foram vítimas de um golpe. “Ficou muito claro que era um golpe, era muito óbvia a situação toda. Assim que a gente experimentou começamos a sentir uma reação muito forte de tontura, enjoo, teto preto, desmaio, muitas sensações misturadas, junto com uma aceleração muito grande do ritmo cardíaco.”

Ao perceberem que estavam em uma enrascada, Ofélia e seu amigo saíram correndo, um pra cada lado. Ela acabou em um posto de gasolina mais próximo onde atraiu a atenção dos frentistas e passantes. Segundo ela, alguém se aproveitou da situação e furtou o celular e sua carteira. No entanto, ela diz que seu estado era tão ruim que ficou no posto até uma ambulância chegar. Terminou a noite na Santa Casa, na Santa Cecilia. “A droga que me deram me dava uma sensação de morte em loop.”

Felizmente, Ofélia não sofreu nenhuma violência sexual, mas por medo de expor que sofreu o golpe ao procurar uma droga ilícita, não buscou a polícia. Foram meses se sentido vulnerável após sofrer o golpe. “Eu fiquei com muito receio de voltar nessa história, de prestar uma queixa, fazer exame toxicológico e ir atrás disso. Sinto que, por ser mulher, sofrer algo assim é bem mais delicado, porque fiquei com medo de ser estuprada. Levaram meu celular e R$ 50, mas eu quase morri por causa de nada.”

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Nos relatos colhidos pela VICE, Ofélia não foi a única a sofrer o golpe ao consumir substâncias ilícitas. Ao que parece, o golpe do BNC encontrou uma maneira de transitar de maneira mais livre, que se aproveita do fato de a vítima não procurar a polícia com medo de entregar o próprio consumo de drogas.

Em outubro de 2016, os jovens Sílvio* e Natércio* passaram pelo mesmo golpe da cocaína. Após passarem a noite na Rua Augusta, foram comprar cocaína com um indivíduo que ofereceu um “test-drive”. Acordaram machucados e ensanguentados na Rua Avanhandava, sem os pertences, 40 minutos depois. Por terem os cartões roubados, prestaram queixa na delegacia, mas relatam ter recebido um tratamento “nojento” da Polícia Civil.

O que dão para a Cinderela dormir?

O golpe do Boa Noite Cinderela consiste em dopar a vítima para facilitar a prática de um crime. Normalmente são crimes patrimoniais, como o furto e o roubo, porém, no caso de vítimas do sexo feminino, o estupro não é incomum.

No entanto, nem sempre a substância escolhida pelo criminoso para aplicar o golpe é necessariamente ilegal, caso da cetamina (um tranquilizante para cavalos), o flunitrazepam (cujo nome comercial é Rohypnol) e até o diazepam. Já no caso das substâncias ilícitas estão o GHB, o MDMA e até a cocaína, dependendo dos casos.

André Valle de Bairros, doutor em Toxicologia e Análises Toxicológicas e professor de Toxicologia do curso de Farmácia da Universidade Federal de Santa Maria, desenvolveu em seu doutorado um método capaz de analisar as principais drogas facilitadoras de crime que ao mesmo tempo fosse mais barato para a perícia.

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Segundo Bairros, são mais de 100 Drogas Facilitadores de Crimes (DFCs) listadas nos guias da Sociedade de Toxicologistas Forenses (SOFT) e do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes (UNODC).

“Nestes guias estão fármacos da classe dos benzodiazepínicos, barbitúricos, hipnóticos não-benzodiazepínicos, antidepressivos, opióides e derivados, anticonvulsivantes, anti-histamínicos, miorrelaxantes e substâncias diversas como gama-hidroxibutirato, cetamina e até etanol. No caso do Brasil, as principais drogas a serem analisadas são da classe dos benzodiazepínicos devido à alta prescrição médica, fácil contato por parte da população e seus efeitos biológicos. Neste aspecto, o Rivotril, cujo princípio ativo é o clonazepam, é um potente hipnótico que com doses baixas (0,5 a 2 mg) já permite a sedação do indivíduo, o que faz dele uma das principais substâncias utilizadas em casos de Boa Noite Cinderela no país”, explica o toxicologista.

O pesquisador também conta que os sintomas relatados pelas vítimas (de sentirem suscetíveis ao fazerem qualquer coisa, desnorteamento e blecautes) são comuns às substâncias listadas. “Muitas dessas drogas atuam no córtex pré-frontal, responsável pelo planejamento e pensamento complexo e modulador do comportamento social do indivíduo. Ao ingerir essas substâncias, o primeiro efeito é essa capacidade de inibição do raciocínio lógico, antes da total sedação do indivíduo. Isso faz com que a pessoa seja mais impulsiva, fale a primeira coisa que vier a mente e responda as perguntas que lhe são feitas. Por isso é possível que diferentes substâncias possam atuar neste aspecto.”

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Para Silvia de Oliveira Santos Cazenave, perita criminal e professora de Toxicologia da PUC-Campinas, além do problema de enfrentar o exame toxicológico, o golpe tem crescido com a falta de informações disponíveis para os usuários.

“As pessoas vão para as festas, compram comprimidos de ecstasy achando que nele tem apenas MDMA e o que está aparecendo para a Polícia Científica é a presença de outros produtos que são muito mais tóxicos, muito mais nocivos e que podem ter feito esse efeito de desnorteamento, podendo levar até a morte”, explica.

A cetamina foi a droga mais citada nos relatos colhidos nos últimos meses, especialmente porque o tranquilizante pode ser cristalizado no micro-ondas e virar um pó parecido com a cocaína, além de ser facilmente dissolvido em bebidas sem a vítima notar. Atualmente, a substância não é proibida e está listada pela Anvisa como uma droga sujeita à controle especial, especificamente na Lista C1. Na internet, é possível comprar a droga em algumas lojas agrícolas mediante apresentação do registro de veterinário.

“A cetamina teve fases de estar na moda”, conta Maria Angélica Comif, psicóloga do Centro de Convivência É De Lei e coordenadora da ONG de redução de danos RESpire. “Sem parecer preconceito ou estigmatizar, mas o uso dela já foi muito comum dentro das comunidades de LGBT porque a droga ajuda a relaxar o esfíncter. Porém, é uma droga que está passando por uma fase de uso mais acentuado na cena, assim como teve com o MDMA. Mesmo porque é relativamente fácil comprar o medicamento, especialmente no interior, em lojas de pecuária. No Carnaval deste ano ouvi que o pessoal foi comprar o remédio numa loja de pecuária no interior e o dono sequer entendeu o motivo do remédio acabar tão rápido.”

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Foto por Yuri Mira/VICE.

Vergonha & redução de danos

Grande parte das pessoas que sofreram o golpe e não optaram em acionar a polícia relatam sentimentos e situações parecidas. Há a vergonha em recorrer às autoridades por inúmeras razões: desde a vulnerabilidade em ter se exposto ao golpe, o constrangimento em passar por preconceito na hora de contar que estava em uma casa noturna LGBT ou um lugar conhecido pelo tráfico de drogas e também o medo de ser penalizado por ter ingerido uma substância ilícita achando que era cocaína ou um comprimido de ecstasy.

“Nós não temos estatísticas sobre o assunto, porque dependendo da situação a vítima vai relatar para a polícia muitos dias depois. As pessoas muitas vezes não percebem que foram vítimas, elas acham que estavam muito embriagadas e não relacionam com o golpe”, explica Eduardo Becker, perito criminal e atual presidente do Sindicato de Peritos Criminais do Estado de São Paulo.

Diante da dificuldade de solucionar os casos e prender os criminosos, a única saída para diminuir a frequência do golpe é conscientizar os frequentadores da boemia paulistana. “Prestar atenção onde deixa o copo e de quem você está aceitando uma bebida, principalmente”, adverte Becker.

Considerando que o golpe se aproveita da criminalização das drogas para se legitimar, uma das soluções também está em iniciativas de redução de danos nas baladas, que visam informar e conscientizar os consumidores de drogas. Aí que entra o trabalho de Comif e do RESpire.

O ResPire existe desde 2011 e começou como uma iniciativa financiada pelo Departamento de Hepatites do Ministério da Saúde e pela UNODC, atuando de graça em festas eletrônicas. Normalmente, o grupo monta uma tenda onde os baladeiros recebem água de graça e folders explicativos sobre cada droga e os efeitos delas, além de “kit sniffs” com canudos para que os usuários de cocaína evitem usar notas de dinheiro e o compartilhamento de canudos.

“Por conta do proibicionismo, as substâncias são muitos adulteradas e as pessoas não sabem o que estão tomando. Não adianta e é hipócrita falar que não se pode usar drogas”, explica a psicóloga. “Temos três a quatro redutores de danos que se revezam em turnos. Nós conseguimos evitar hospitalizações, trazer informações pautadas na realidade e falar do autocuidado. A pessoa precisa saber como se cuidar.”

Embora a iniciativa conte com experiências positivas em festas de universidades para evitar que vítimas sejam dopadas ou sofram efeitos colaterais por conta de alguma substância que ingerida pensando ser outra, ainda são poucas as festas que aderiram à redução de danos. Muito se deve pela falta de grana para bancar uma tenda de redução de danos e também por medo de donos de casas noturnas e produtores de assumirem que há um consumo de substâncias ilícitas nas baladas.

“Os donos não querem admitir o uso de drogas por medo de serem criminalizados, e há um pouco de hipocrisia no assunto porque eles não deixam distribuir os kits. É um misto de medo e de hipocrisia, na verdade”, explica Comif.

Não custa repetir os cuidados para evitar o golpe do Boa Noite Cinderela. Fique sempre de olho no seu copo, não aceite bebidas de estranhos e nem qualquer tipo de droga. Se for usar drogas, tente se informar sobre a procedência. Se hidrate. Combine também com seu amigo de avisá-lo sempre se for sair da festa sozinho ou acompanhado.

Se você sofreu um golpe, não deixe de ir até uma delegacia para registrar um Boletim de Ocorrência e pedir para o IML um exame toxicológico e, se for o caso, um tratamento de profilaxia pós-exposição ao HIV.

*Os nomes das vítimas foram trocados para manter o anonimato.

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