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'Doom Fetito': o mod argentino pró-aborto do game 'Doom'

Obviamente os demônios foram substituídos por fetos gigantes nesse jogo.
Imagem: Florencia Rumpel/Divulgação.

Após meses de protestos e contra-protestos, na semana passada o Senado da Argentina votou por rejeitar o projeto de lei que legalizaria a opção do aborto nas primeiras 14 semanas de gravidez.

Florencia Rumpel, ativista e criadora de videogames, estava entre as mulheres reunidas em frente ao Congresso durante a votação. “Estamos todas muito tristes, frustradas, e com raiva”, ela disse à VICE em uma conversa por videoconferência, no dia seguinte. “Mas teremos que pegar esses sentimentos e usá-los para algo produtivo.”

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Florencia é a criadora de Doom Fetito (fetinho, em português), um mod de Doom em que os monstros são substituídos por padres, anti-abortistas, policiais nazistas, e o chefe final é um feto gigante escondendo Misoprostol, medicamento recomendado para abortos seguros. Doom Fetito pode ser baixado aqui (mas precisa de um arquivo ".wad" de Doom 2 para rodar), ou você pode assistir ao vídeo, que é curtinho e mostra toda a experiência.

Se o mod parece bizarro, mais bizarro ainda foi o que o inspirou: um feto gigante feito de papel machê que apareceu pela primeira vez em uma passeata anti-aborto na Argentina e logo rodou a internet. “Eu vi um tuíte que comparava o feto gigante com um chefão do Half Life e pensei que isso ficaria legal num mod de Doom”, disse Florencia.

Doom Fetito é uma óbvia provocação em videogame dos discursos e das táticas empregadas pelos grupos anti-aborto. Como exemplo do que ela está criticando, Florencia disse que em uma dessas marchas “havia uma mulher distribuindo pequenos fetos de plástico. Parece surreal quando eu conto para as pessoas, mas isso está acontecendo”. Eu a assegurei que acreditava nela.

Fetinho, que vai no título do mod, por coincidência também é o nome de um personagem famoso na internet brasileira, criado pela página Desenhista que Pensa. Apesar de separados por fronteiras, o movimento anti-aborto aqui no Brasil e lá na Argentina tem suas similaridades. “Eu fiz esse mod principalmente para mim mesma e para as pessoas daqui, porque estamos lutando contra essa coisa que é assustadora, mas que também é bem ridícula. E eu acho que é importante não esquecer deles sendo ridículos.”

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Todas as escolhas estéticas de Doom Fetito são representativas de algum elemento do clima político argentino. A cor da armadura que o jogador pode obter foi alterada para se aproximar aos “pañuelos verdes”, lenços verdes que sinalizam o apoio ao projeto de lei. Os policiais nazistas referem-se à repressão policial durante os protestos a favor, e ao partido neonazista Bandera Vecinal que se manifestou contra a legalização. Os padres que tentam impedir o jogador de conseguir o medicamento abortivo representam a pressão política exercida pelo clero — que possivelmente ainda reage à derrota na Irlanda em junho, quando o aborto foi legalizado em um referendo.

Mesmo sendo um país de maioria católica, em pesquisa do Instituto Ipsos 71% dos argentinos disseram ser contra a influência da igreja na política. Na prática isso é mais complicado.

O jornal argentino Clarín, após o voto, chamou a igreja de “a figura chave que conseguiu parar a lei”. Muitos senadores ecoaram a mensagem anti-aborto da igreja no Congresso. Papa Francisco, que é conhecido por ser mais progressista que os papas anteriores, em pronunciamento comparou aborto em casos de malformação do feto às práticas eugênicas nazistas, um “nazismo de luvas brancas”, segundo o pontífice. No Brasil, o aborto por malformação fetal é autorizado apenas em casos de anencefalia.

Fora isso, a lei brasileira é parecida com a lei argentina. A partir de 1921, quase cem anos atrás, a lei argentina permite aborto apenas para casos em que a gravidez é produto de estupro, ou se coloca em risco a vida ou saúde da mãe. Nos outros casos, pode resultar em pena de 1 a 4 anos de cárcere para a mãe e a pessoa responsável pelo procedimento.

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Mas mesmo com a criminalização, as estimativas mais confiáveis são de cerca de 400 mil abortos clandestinos por ano no país. O ministro da saúde disse ao Congresso que o número de mulheres internadas por decorrência de abortos na Argentina chega a 50 mil por ano, em sua maioria abortos induzidos. Essa é a maior causa de mortes maternas no país, representando 17% do número total de mortes maternas entre o período de 2013 a 2015.

O arcebispo de Buenos Aires, Mario Poli, convocou uma “Missa pela Vida” à mesma hora da votação na semana passada. O cardeal já havia se pronunciado pedindo que os congressistas legislassem “a favor da cultura da vida”, um código sutil utilizado pelo cardeal para incentivar a mensagem anti-aborto.

“Eles tem um argumento emocional, mas sem empatia. Se houvesse empatia nos argumentos deles, ficariam do lado das mulheres grávidas que querem ter a escolha do que acontece com seus próprios corpos”, disse Florencia.

Doom Fetito causou uma impressão em agências de notícias católicas e sites relacionados no Brasil como “um jogo vergonhoso e de mau gosto”.

“Eles se importam tanto com a maneira que lutamos para ganhar nossos direitos, mas não preocupam-se com a violência real e física dos grupos anti-aborto, que estão socando pessoas com o lenço verde [em apoio à legalização], que literalmente são apoiados por um partido neonazista. Talvez direcionar a raiva deles ao meu jogo os impeça de direcionar essa raiva às pessoas”, disse Florencia. “Mas ainda é preocupante que a única maneira de chamar a atenção é através do choque, e que as outras coisas que eu faço não interessa tanto essas pessoas.”

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Florencia é uma artista prolífica, e entre seus outros trabalhos está Como la Gente Civilizada, sobre a experiência pessoal de mulheres com o sexismo e o ativismo feminista nas ruas argentinas; e também ¿Qué pensás hacer?, um pequeno jogo em texto sobre uma adolescente grávida, criado para uma game jam a respeito de educação sexual organizada pela Fundación Huésped. “Eu fiz esse jogo porque basicamente todo mundo que eu conheço tem uma história sobre uma gravidez indesejada, e todas essas histórias eram ruins porque o aborto não é legal na Argentina”, disse. “Então eu misturei essas histórias em uma só e tentei focar na ideia de que independente do que aconteça, a escolha deveria ser da mulher que está grávida”.

Descrição do jogo ¿Qué pensás hacer?: "Esse é um jogo sobre uma garota que engravidou, sobre as coisas que lhe acontecem que sente necessidade".

Ambos são feitos no Twine, uma ferramenta acessível para criação de jogos em texto, e parte do ativismo de Florencia é ensinar pessoas a usarem ferramentas como essa. “Quando você lança um jogo assim, outras pessoas que se sentem da mesma forma mas estavam com medo de falar se sentem encorajadas”, diz a artista. Por exemplo, Florencia cita “essa garota que fez um jogo no Construct 2 [ferramenta de desenvolvimento] sobre ser uma garota, e as expectativas que ela enfrentava por ser comparada constantemente com seu irmão.”

Doom Fetito é basicamente uma meme que foi longe demais, mas eu acho que ajudou a trazer atenção ao que está acontecendo aqui. Infelizmente todo o trabalho por abortos seguros e gratuitos não tornou o projeto uma realidade, mas ainda existe muito pelo que lutar, ainda que tenhamos perdido recentemente. Nós continuaremos nos organizando e pressionando o governo, vai ser uma longa luta.”, disse Florencia, antes de consertar: “Está sendo e continuará sendo uma longa luta.”

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