O pós-trap de JPEGMAFIA em 'Veteran'

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Noisey

O pós-trap de JPEGMAFIA em 'Veteran'

Juntando chavões do rap mainstream, música experimental e agressividade extrema, o rapper de Baltimore fez de seu mais recente disco um comentário sobre o atual estado do hip hop.

"I need all my bitches same color as Drake / If they not, then they getting rocked" são as frases que abrem Veteran, que está longe de ser o primeiro disco do rapper de Baltimore JPEGMAFIA, mas talvez tenha sido o que o levou mais longe até então. Em nem dois meses de lançamento, JPEG já esgotou dois estoques de vinil do álbum e descolou turnês com nomes veteranos do rap esquisitinho, como Milo e clipping.

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Mas nem só de underground vive JPEG. A referência ao Drake no começo de "1539 N. Calvert", primeira faixa do disco, é só o primeiro dos mais variados comentários que o rapper faz sobre o distante e gigantesco mundo do rap mainstream, que se tornou o alicerce da cultura pop. A segunda faixa, "Real Nega", abre com um ruído de garganta distorcido que em poucos segundos se revela a reconhecível voz do ODB; no single "Baby I'm Bleeding", Peggy promete "nunca ficar loiro como Kanye" e fala que, ao se tornar popular entre os fãs de country, se tornou "a nova Beyoncé". A faixa "Thug Tears" soa como um som distorcido do Steve Lacy, e alguns flows ao longo do disco parecem ter saído de um single do Playboi Carti.

Veteran, porém, não é uma audição comum para o fã de hip hop. Enquanto faz uma paródia da agressividade extrema com suas letras (o que o rendeu comparações incessantes ao Death Grips), JPEG desconstrói a estrutura verso-refrão-verso, distorce samples ao ponto de ficarem irreconhecíveis e incorpora gravações de campo às 19 faixas que formam Veteran, tudo isso num volume excruciantemente alto. Enformando um disco que comenta o popular e o status mainstream do hip hop, Peggy ao mesmo tempo destrói os mesmos chavões com os quais trabalha ao longo dos 47 minutos. Tudo isso lhe rendeu o rótulo de "pós-trap" internet afora.

Em uma entrevista quase-rouca por telefone, ao fim da sua turnê com o Milo, JPEG me disse estar lisonjeado com o título, mas que essa não é a única coisa que ele espera que seus ouvintes tirem de Veteran. "Acho que essas coisas não foram misturadas antes porque haviam essas regras não escritas de que elas não ficavam bem juntas. Com esse disco, quero dizer que está tudo bem, você pode fazer o que quiser", disse.

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Pra entender bem o conselho de Peggy, você pode ler o restante da entrevista e ouvir Veteran no player abaixo.

Noisey: Pelo que eu escuto no Veteran e em trabalhos antes dele, você parece se sentir muito confortável em dizer qualquer coisa que você acha que deveria em um álbum. Isso rola mesmo?
JPEGMAFIA: Eu sou um defensor muito grande da liberdade de expressão. Quando eu vejo pessoas na Fox News dizendo que o LeBron James devia calar a boca e driblar, eu não tenho problema nenhum em dizer que vou dar um pau em alguém da alt-right. Eles, obviamente, não se importam com meus sentimentos, então eu estou pouco me fodendo pros deles. Ponto. É uma filosofia que eu aplico seletivamente às pessoas pelas quais não tenho respeito, basicamente.

Alguns meses atrás, no Brasil, tivemos um caso de MC que lançou um som que basicamente descrevia um estupro. As pessoas ficaram muito bravas, e a música acabou sendo banida de todos os serviços de streaming. O que você acha disso? Há um limite para a liberdade de expressão?
Eu não sou a favor de ninguém rimando sobre estuprar alguém. Mas, como eu disse, quando eu digo que sou defensor da liberdade de expressão, eu realmente sou. Você tem o direito de dizer o que quer que você queira, mas liberdade de expressão não significa liberdade de consequências. Então, se as pessoas baniram ele, provavelmente é algo para o que ele precisou se preparar mentalmente. É menos sobre concordar com [o que ele disse], e mais sobre concordar que as pessoas podem dizer o que quiserem, mas devem ser capazes de lidar com as conseqüências. Então eu não sou a favor de ninguém rimar sobre estupro, mas, se você vai, saiba que é possível que as pessoas não vão curtir. Mas se você lida com isso, então vá em frente, o problema é todo seu.

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JPEGMAFIA é uma persona? Ele tem alguma coisa a ver com você e suas opiniões como pessoa?
É uma versão exagerada de mim. E é uma reação a, principalmente, onde eu cresci quando me mudei para o sul, porque eu tive que lidar com o racismo muito diretamente ainda muito novo. E eu não tinha ninguém para me ajudar.

Quando me mudei, vim de Nova York e mudei para o sul do Alabama, que é um antro de racistas. Voltando para casa no primeiro dia da escola, eu estava caminhando ao redor de um lago quando um cara veio na minha direção e parou o carro. Ele cuspiu em mim, me chamou de “nigger” e vazou. Eu tinha 12 anos de idade, e não havia ninguém lá para me dizer o que fazer, eu tinha que descobrir sozinho. Então eu fui para casa e chorei. Essas coisas continuaram acontecendo comigo, e eu ia para casa e pensava "o que eu vou fazer?".

Então, um dia, tomei uma decisão de que ou eu continuaria voltando para casa e chorando, ou iria dar um pau nessas pessoas. Depois de um tempo, fui à escola e puxei algumas pessoas que tiraram sarro de mim de lado e soquei a cara delas. Depois disso, eu percebi: essas pessoas são fracas. Eles estão fazendo essa merda porque eles têm grana e pensam que estão seguros. Todo esse racismo, todo esse negócio de me chamar da palavra com “n”, não é nada. Eles estão fazendo isso por causa de suas próprias inseguranças. E quando você soca a cara deles, eles não têm nada a dizer para você.

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Para resumir tudo isso, JPEGMAFIA é uma versão exagerada de quem sou e com o que eu lidei. Eu realmente possuo quase todas as armas de qual eu falo no disco, mas não ando pela rua apontando pra quem passar. Pego nelas quando preciso, para autodefesa. Mas todas as coisas sobre as quais eu falo aconteceram ou poderiam ter acontecido.

Que equipamento você usou pra gravar o disco? Foi muito diferente do que você tinha usado nos seus discos anteriores?
Um pouco. Eu usei muitos instrumentos reais, muito hardware, como um [sintetizador] MicroKorg XL. Tenho muitos pedais de rock, coisas que músicos de rock e músicos de metal usam em guitarras e vocais, que eu usei em samples de bateria, ou minha voz, ou qualquer coisa assim. E é claro que eu usei diferentes softwares de áudio digital como Fruity Loops, Logic, etc. Eu sou proficiente todos os softwares de trabalho digital, tirando o Ableton, porque eu aprendi a usá-los por conta quando tinha 14 anos.

Apesar de fazer esse rap estranho, você tira muitas referências do rap popular. De onde vêm suas referências? Você escuta muito rap popular, assim como rap underground?
Com certeza. Eu definitivamente escuto mais rap underground, mas essa é a beleza do jeito que eu trabalho: eu sou muito indiscriminado com o que eu escuto. Mesmo que eu não goste de algum artista, se eu acho que ele é bom, então acho que ele é bom. Eu escuto, então ele terá uma influência sobre mim. Eu escuto muito Lil Uzi Vert, Ol' Dirty Bastard… Se for bom, eu escuto, porque antes de pensar em fazer música eu era um fã de música, e isso nunca mudou.

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Como funciona o processo de unir gêneros tão diferentes?
Honestamente, é natural pela quantidade de música que escuto. Parece estranho para outras pessoas, mas não é nada para mim, porque eu escuto muito som. Eu sempre estou aprendendo, sempre ouvindo, sempre mantendo meu ouvido perto do que está acontecendo. Então, veio naturalmente para mim. Parece estranho para as pessoas, mas não é mesmo algo que eu fiz de propósito. Eu fiz um beat e rimei por cima dele, é assim que eu vejo.

Eu vi Veteran sendo descrito como "pós-trap". Você concorda?
Uau… Eu me sinto lisonjeado por essa afirmação. Eu acho que até certo ponto eu concordo porque infla bastante o meu ego [risos]. Foda-se, eu concordo mesmo, eu adoraria pensar que eu sou pós-trap. Espero que as pessoas escutem e se influenciem não em fazer algo parecido, mas em fazer o que elas quiserem. Como eu disse antes, sou um defensor da liberdade em tudo. Então, com Veteran, espero que as pessoas pensem nele não apenas como pós-trap, mas como prova de que você pode fazer qualquer coisa. Eu coloquei música country no disco, misturei coisas que não fazem sentido, mas acho que essas coisas não foram misturadas antes porque haviam essas regras não escritas de que elas não ficavam bem juntas. Mas, com esse disco, quero dizer que está tudo bem, você pode fazer o que quiser.

Do jeito que eu ouvi, Veteran parece um pouco um comentário sobre o atual estado do hip hop mainstream e da cultura popular como um todo. As referências que você colocou a isso foram calculadas?
Também veio naturalmente. Às vezes eu só estou tentando chegar numa rima. E às vezes eu só estou fazendo referência a algo que eu de fato consumo, como quando eu falo “I think I’m Rick and Morty in the lab”, é porque eu assisto Rick and Morty. Não é como se eu tivesse sentado e propositalmente trabalhado pra colocar uma referência popular. Sou uma cria da internet como você, ou … Na verdade, não sei quantos anos você tem.

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Caralho, eu amo Arca. […] Eu beijaria ele na boca se o visse, e se ele me deixasse.

Tenho 21.
Você tem 21? Ah, você com certeza é cria da internet. Eu tenho 28, sou velho pra caralho. Mas sou cria da internet. Na internet, a gente lida com muita informação. Muita coisa diferente, o tempo todo. Veteran é um reflexo disso.

Tem muito noise/gravações de campo no Veteran . De onde vêm suas referências de música experimental? Você ouve muito?
Eu sou um grande fã de música experimental. Sou muito fã de Throbbing Gristle, de uma banda antiga dos anos 60 chamada White Noise, Björk, toda essa galera que trabalha com essas ideias loucas e faz com que elas funcionem. Eu olho para essas coisas e fico tipo, isso é genial. Esses são os artistas que eu admiro. Fora isso, é minha própria vida pessoal que me influencia. Ah, e o Arca. Caralho, eu amo Arca. Eu amo demais o Arca, ele é meu pai. Eu sou literalmente apaixonado por esse homem. Eu beijaria ele na boca se o visse, e se ele me deixasse.

Você se interessaria em trabalhar com outros produtores? Porque você parece ter uma relação bastante íntima com as suas produções.
Eu estaria aberto a fazer isso, mas depende. Eu teria que ser muito fã da pessoa, ou ela teria que fazer algo bem interessante. Porque eu de fato tenho uma conexão bem próxima com os meus beats, eu me refiro a eles como meus filhos. É muito difícil para mim deixar isso, deixar que as pessoas me vejam trabalhando neles. É raro, mas acontece. Arca seria uma dessas pessoas. Ele pode ver tudo de mim [risos]. Björk também. Eu também sou muito fã do Metro Boomin, admiro o que ele fez no hip hop — ele mudou a paisagem do hip hop por completo. Não consigo pensar mais pessoas agora, mas sim, eu toparia. Só seria muito seletivo.

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Você morou em muitos lugares nos últimos anos, mas se descreve como um artista de Baltimore. Por quê?
Baltimore é o único lugar em que eu me senti em casa. Eu fui uma daquelas crianças que se mudaram muito e nunca pararam em um só lugar, então nunca me senti em casa. Eu me sentia em casa quando morava em Nova York, mas eu era muito novo, então eu realmente não considero ela minha cidade natal, porque me mudei quando tinha 12 anos. Eu morei em Louisiana, mas enquanto estava no exército. Em todo lugar que morei, sentia que tinha uma lata de lixo do meu lado. Quando morava no Alabama, rolava muita merda. No Japão, eu me senti muito sozinho às vezes. Kuwait, Iraque, Alemanha, lugares em que morei por causa do exército. Baltimore é o único lugar onde eu eu morei e senti uma conexão com todo mundo, e eles me aceitaram como um deles, ninguém se importou de eu não ser de lá originalmente. Eles me aceitaram e eu me tornei parte da cena, e foi lindo.

Foi aí que você começou a lançar seu som?
Eu já tinha lançado umas paradas, mas em Baltimore foi a primeira vez que eu soltei algo e as pessoas se importaram. Eu já soltava música, mas estava no exército, então eu não podia fazer shows ou algo do tipo, porque estava sempre em lugares diferentes. Mas, é, quando eu cheguei em Baltimore foi a primeira vez que eu lancei música e as pessoas se importaram.

Por que você intitulou esse álbum, especificamente, Veteran ?
É um duplo sentido. Veterano, porque já faço música há muito tempo, mas também porque sou literalmente um veterano. E ninguém pode tirar isso de mim.

Aqui nos Estados Unidos, os militares são vistos como referência. Ninguém fala mal deles, eles não fazem nada de errado. Mas isso é bem seletivo. Porque eu, como pessoa negra que esteve nas forças armadas, posso dizer que ninguém dá um foda-se por eu ser um veterano. Essa ideia de que estar no meio militar é de alguma forma uma referência ou coloca você nas posições mais altas da sociedade é falsa e vale apenas para pessoas brancas. Eu sou prova viva disso.

No seu álbum, você critica feministas, misóginos, trolls da alt-right, libtards [ou “liberais retardados“], etc. O Brasil é um país bem polarizado politicamente, e eu acho que esse é o caso dos EUA também. Qual você acha que é a importância de criticar as hipocrisias em ambos os lados desse espectro?
É como é a vida real. Eu não sei de que lado você está, mas há problemas em ambos. E eu critico ambos porque tenho problemas legítimos com ambos. Aqui nos EUA, é como se você tivesse que escolher se alinhar à esquerda ou à direita. E há tantas pessoas que não são alinhadas com nenhuma das duas, ou estão no meio, e não há representação para elas. É como se te forçassem a entrar em uma categoria, independentemente do que você realmente pensa.

Obviamente, eu não sou republicano, porque muitos republicanos são completamente racistas e falam besteira demais. Mas os republicanos, por exemplo, são íntegros no que falam. Não importa o quão estúpido é o que eles falem, eles não mudam o que disseram. E eu acho que é algo que os liberais podem aprender. E, ao mesmo tempo, sou mais inclinado para a esquerda, o que significa que sou mais liberal, mas também há muitos problemas no partido liberal. Eu sinto que muitas vezes eles tratam de questões com as quais eles realmente não se importam, ou se dão tapinhas nas costas por não serem racistas. E isso não está ajudando. Isso só faz você parecer bonzinho. Então eu tenho problemas reais com ambos, é por isso que eu critico ambos.

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