Morte e Ecstasy: A Ascensão e a Queda do "Gueto Rave" no Burning Man

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Música

Morte e Ecstasy: A Ascensão e a Queda do "Gueto Rave" no Burning Man

O primeiro homem a comandar um DJ set na "playa", relembra o momento em que o festival perdeu sua alma.

O momento em que Terbo Ted, o primeiro e último prefeito do Techno Ghetto, o acampamento oficial da Black Rock City [a região de Nevada onde acontece o Burning Man], percebeu que a sua utopia rave estava condenada ao fracasso foi quando uma garota o abordou em 1996. Ela era uma típica surfista da Califórnia, de shorts jeans minúsculos e chinelo de dedo, mas estava completamente frita, por dentro e por fora, pelo sol e pelos excessos.

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Os seus lábios estavam secos e rachados. Bolhas amareladas de uma queimadura de terceiro grau se espalhavam pelos seus ombros vermelhos feito camarões; ela definitivamente estava usando a roupa errada para o deserto impiedoso, Ted pensou consigo mesmo. O vento havia voltado a soprar com o pôr do sol, transformando o dia escaldante em uma noite geladíssima. Pilhas de flyers que um grupo de ravers de Los Angeles havia deixado no chão agora se espalhavam pela praia feito confetes.

"Você tem água?", ela murmurou.

"Sim."

"Você tem comida?", ela perguntou.

Ele acenou novamente com a cabeça, cada vez mais preocupado que essa jovem garota não fosse sobreviver à noite naquele estado. Embora todos os ingressos para o Burning Man tivessem a frase "VOCÊ PODE MORRER, e isso é responsabilidade sua" impressa no verso, Ted começou a se perguntar se essa advertência se sustentaria em um tribunal. Enquanto pensamentos sobre a possível morte da garota se agitavam na sua cabeça, ela olhou para ele e perguntou:

"Você sabe onde posso achar ecstasy?"

Naquele momento, Ted sabia que estava tudo acabado. O acampamento que ele havia se esforçado para aperfeiçoar durante cinco anos estava desmoronando. A notícia que corria era de que policiais do departamento de narcóticos estavam efetuando prisões, as mortes estavam aumentando progressivamente e a culpa era dos frequentadores. Ao final daquela semana, uma pessoa havia morrido, outras três pessoas haviam sido gravemente feridas e o "gueto rave" do Burning Man, como era chamado até então, se tornaria apenas uma lembrança.

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Quase 20 anos depois, a música eletrônica ainda é um assunto controverso no Burning Man, e se tornou ainda mais importante com a ascensão da cena de festivais de EDM nos Estados Unidos. Enquanto dezenas de milhares de pessoas vestidas com peles fosforescentes se preparam para uma semana de poeira e diversão, puristas e organizadores se preocupam com a alma do Burning Man. Uma área especial chamada Deep Playa Music Zone foi criada longe do acampamento principal, e carros de som são advertidos sobre divulgar lineups, para evitar que o Burning Man seja confundido com outro festival qualquer de verão.

A tensão entre os organizadores do Burning Man e a cultura rave não é nenhuma novidade. A relação íntima e às vezes hostil do festival com a cultura da música eletrônica remete aos primeiros anos do Burning Man.

Vamos viajar de volta para 1992. As raves já aconteciam a todo vapor há quase meia década no Reino Unido, mas na baía de São Francisco, elas criavam então uma espécie de segundo verão do amor. Como membro da crew do Mr. Floppy, Ted esteve envolvido em algumas das primeiras raves da região, sediadas na casa de Flop, uma mansão enorme em East Oakland que já havia sido um bordel frequentado assiduamente pelo escritor Jack London.

Ao mesmo tempo que a cena rave explodia, outro grupo de artistas, punks e agitadores da baía de São Francisco, conhecido como Cacophony Society, iniciava o seu próprio legado no deserto de Nevada. O grupo fundiu uma festa anual de São Francisco em que se acendiam fogueiras para comemorar o solstício de verão, com as suas festas "zone trip". O evento chamado "Cacophony Society Zone Trip #4: Bad Day at the Black Rock", em 1990, serviria como marco inicial para o Burning Man.

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Nos fundos de um jornal alternativo local, um grande amigo de Ted, Craig Ellenwood, vulgo DJ Niles, membro da crew do Mr. Floppy e da banda seminal de industrial Psychic TV, descobriu um anúncio do tamanho de um papelzinho de biscoito da sorte sobre uma reunião de artistas no deserto. Depois de ligar para o número no anúncio, o grupo se encontrou com o fundador do Burning Man, Larry Harvey, e foi convidado a levar caixas de som e música para o deserto.

"Fomos para lá com um sistema de som de quatro caixas, não tinha crossover. Tinha pertencido a uma banda punk, um dos caras tinha morrido", relembra Ted. "Tínhamos só um gerador, umas duas lâmpadas de luz negra, umas paradas de cartolina pintadas com tinta fosforescente e não muito além disso."

Como uma tribo rival, os ravers foram vistos com desconfiança pelos proto-Burners. O seu acampamento, apelidado de "gueto techno", ficava há mais de 1,6 km do acampamento principal, ao lado dos banheiros químicos.

"Esses caras eram muito práticos, faziam trabalhos manuais, eram artistas, escultores e esse tipo de coisa", diz Ted. "A maior parte do núcleo principal da galera do Burning Man era 10, 15 anos mais velha do que nós, e olhava para nós como se estivéssemos trazendo uma cultura consumista para lá."

Apesar da exclusão do acampamento principal, o Burning Man foi um evento revelador para Ted e os outros. A liberdade total do ambiente, junto com a atitude laissez-faire da playa, ajudou a criar um momento transcendental para Ted quando ele tocou o seu primeiro set no Burning Man. Ele estava em um evento onde todo mundo devia participar ativamente; ninguém devia apenas observar.

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"Era basicamente a passagem de som. Tinha 16km de sujeira à minha frente e ninguém mais ali. Tinha os decks, e cheiramos um pouco de ecstasy em cima dos toca-discos. Toquei uma faixa do Jean Michel Jarre", relembra Ted. "Não devia nem estar tocando. Estava ali como roadie… Meu nome nem estava no flyer."

Embora alguns membros do Cacophony Society vissem os novos frequentadores com desconfiança, ambos compartilhavam da mesma filosofia e visão política. Os dois grupos eram influenciados pelos escritos do anarquista Peter Lamborn Wilson, que sob o pseudônimo Hakim Bey defendia o conceito da Zona Autônoma Temporária como uma forma de escapar do controle da sociedade criando espaços sem regras ou normas.

No ano seguinte, em 1993, este conceito se solidificou quando o sistema de som da SPaZ (Semi Permanent Autonomous Zone — em tradução livre, Zona Autônoma Semitemporária), de São Francisco, se tornou o sistema de som principal do Burning Man, substituindo o sistema de som da crew do Mr. Floppy, que havia se dissolvido. Cada ano trazia mais frequentadores, sistemas de som maiores e acontecimentos marcantes. Em 1995, Ted tocou o primeiro set gravado no Burning Man.

1996, apelidado de "O Inferno", era para ser a edição mais ambiciosa do Burning Man. Oito mil pessoas compareceram ao festival naquele ano. Ted agendou seis sistemas de som para o Techno Ghetto, que seriam dispostos em um anel orbital de 1,6 km de comprimento, com os sistemas de som voltados para o deserto e os acampamentos. Ted e o outros organizadores chegaram com semanas de antecedência para inspecionar a região e construir um centro cívico.

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"Em 1996, o tema era o inferno, e você tem que ter muito cuidado quando tem um evento temático, porque é tipo uma meditação — e aquele ano foi um inferno completo", diz Ted. "Quando chegamos no deserto, todo mundo jogou o script pela janela."

Michael Furey, um dos primeiros frequentadores do Burning Man e amigo íntimo dos fundadores do festival, morreu em um acidente de moto no começo daquela semana, supostamente bêbado, disputando o "jogo da galinha" [uma brincadeira tipicamente americana em que dois oponentes posicionam seus veículos em extremidades opostas de uma pista em linha reta com uma marcação na metade e devem arrancar ao mesmo tempo. Perde quem desistir do embate, desviando seu veículo] com um caminhão, com os faróis apagados. A sua morte serviu como um presságio para o que estava por vir.

Quando chegaram, os frequentadores ignoraram o esquema de disposição das barracas cuidadosamente planejado pelos organizadores e armaram acampamento onde bem entenderam. Grupinhos haviam se formado dentro dos sistemas de som, e brigas estúpidas sobre moda e banheiros químicos se tornaram a regra.

Ao longo da semana, mais tragédias aconteceram. Três frequentadores ficaram seriamente feridos quando um art car atropelou sua barraca. Como Patrulheiro de Black Rock, Ted tinha um rádio, e começou a ouvir os chamados perturbadores por ajuda.

"Ouvia pelo rádio: 'Tenho uma emergência, você precisa manter este canal livre. Um braço foi parcialmente decepado por uma colisão envolvendo um veículo. Preciso das coordenadas de GPS para chamar um helicóptero e fazer a remoção. Preciso de reforços urgentemente. Esta pessoa está sangrando. Preciso de ajuda'. E você fica tipo 'Puta merda, o braço dessa pessoa foi decepado'… Lá vem o helicóptero, ele sobrevoa o acampamento… E todas as garotas mostram os peitos para ele."

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A polícia também havia se tornado uma presença constante no festival, e dezenas de pessoas foram presas por posse de drogas naquele ano. A tensão começou a desgastar Ted e os outros organizadores. Larry Harvey se escondeu durante longos períodos de tempo para fugir do stress.

Tudo se tornou muito pesado para Ted. Ele, junto com um terço dos organizadores, abandonou o evento quando acabou o fim de semana.

"Não valia a pena ser associado a ele. Não queria promover um evento onde as pessoas fossem presas e mortas. Isso não era legal. Isso não estava no acordo", ele diz.

Em um comunicado à imprensa no seu site, os organizadores do Burning Man culparam o elemento rave para "uma degradação das normas cívicas e o caos criado pela comunidade". Sistemas de som de mais de 100 watts de potência foram proibidos no ano seguinte. A presença da polícia, que já havia começado a ser mais constante, foi amplificada depois das prisões e afastou muitos dos anarquistas e idealistas rave originais. Para Ted, era uma ideia que havia se esgotado.

"Tive uma experiência extra-corporal incrível tocando em 1992", ele diz. "Parecia que eu só estava tentando repetir isso. Você tem aquela primeira brisa, e depois disso nunca é tão bom."

Hoje, o festival espera atrair mais de 60 mil pessoas e é um lugar muito diferente do evento original. Longe de ser uma zona autônoma temporária, o Burning Man se parece mais com a Disneylândia. Você ainda pode morrer se não for cuidadoso, mas há muitas pessoas lá para garantir que isso não vá acontecer. Os sistemas de som agora são parte integral da cena. Mas Ted, que voltou ao festival nas edições de 2012 e 2014, não está impressionado.

"Tem música demais por lá agora. É um desastre de lixo infeliz e mal selecionado. É como uma cidade onde você tem 1110 casas noturnas e só precisa de seis."

Ainda assim, ele sente orgulho da sua contribuição para a evolução do festival. "Acho que se tornou uma marca indelével no Burning Man. Alguém observou recentemente que o Burning Man não cresceu de verdade até a cultura rave chegar, e depois se tornou algo diferente e começou a dobrar de tamanho a cada ano."

@dan_rtype pode ser encontrado no Twitter, não na playa.

Tradução: Fernanda Botta