Como a música eletrônica fez do Kanye West um Deus do som
Image via Youtube.

FYI.

This story is over 5 years old.

Música

Como a música eletrônica fez do Kanye West um Deus do som

Com ajuda de equipamentos e alguns dos nomes mais cabeçudos da música de vanguarda, YE deixou pra trás sua vida como produtor para se tornar um dos mais influentes rappers da atualidade.

Quando Kanye West estava promovendo Yeezus, suas entrevistas tornaram-se um comício improvisado de seu próprio valor enquanto estilista. Ele precisava de um suporte, de uma "infraestrutura" para extravasar seus sonhos. Um dos pontos em que YE ainda bate forte diante de DJs e jornalistas estupefatos é como foi difícil a transição da sua vida de produtor para sua vida como rapper. Kanye era contratado da gravadora Roc-A-Fella em 2000 como produtor, posto com o qual ganhou fama ao criar grande parte das batidas do clássico The Blueprint de Jay-Z, lançado em 2001. Não satisfeito em criar sucessos para gente como Janet Jackson e Alicia Keys, Kanye queria ficar do outro lado da mesa de mixagem. Um relutante Damon Dash (co-fundador da Roc-A-Fella) contratou Kanye como rapper no começo dos anos 2000, uma decisão tomada supostamente para manter Yeezy como produtor da sua firma.

Publicidade

O resto é história — uma linha do tempo frenética lotada de pilotos de séries fracassadas, [carros] Maybachs arrebentados e uma desconcertante apologia a Bill Cosby – mas há algo de revelador sobre Kanye nos seus primeiros passos. A história de um produtor tão bom que os executivos estavam dispostos a torna-lo um rapper só pra não perder suas batidas.

A temática do sampling sempre é usada para amarrar papos sobre Kanye West, o produtor e sua relação com o mundo da música eletrônica. Em grande parte, Kanye ajudou a reacender o fogo da produção que os fãs de hip-hop amavam. Referências à Chaka Khan, ganchos triunfantes numa pegada Lauryn Hill e os tons suaves de Marvin Gaye definiam seus primeiros discos — dando ao som de Kanye um calor e uma familiaridade que funcionam bem com suas letras arrogantes e ainda assim charmosas.

A expansão de suas ambições musicais em 2007, veio junto a de seu crescente repertório com "Stronger", principal single de Graduation, traçando uma trilha rica e fosforescente. Com um sample de "Harder, Better, Faster, Stronger", do Daft Punk, e o uso de vocoder, foi a primeira produção de Kanye com os dois pés plantados na música eletrônica. Os sintetizadores acompanhavam uma batida 4/4 e o sample virou uma espécie de mantra baseado num aforisma de Nietzsche: "O que não me mata, me torna mais forte".

A canção é incrivelmente emblemática provando o que ferramentas de produção digital aliadas a certas influências deram a Kanye a chance de soar como um super-homem. Assim como a arte de Graduation sugere, na capa do disco Kanye estaria alçando voo e deixando a Terra para trás. Por mais que tenham sido necessárias 75 diferentes mixagens, oito engenheiros de sons e 11 engenheiros de mixagem, esta canção soa mesmo como um renascimento cinemático. A última faixa de Graduation, "Big Brother" (com um synth épico e operístico numa cortesia de Mike Dean) é o som de um rapper descobrindo um baú de tesouros, e junto dele uma série de novas possibilidades. De diversas formas, o maximalismo e a cafonice de "Stronger", se comparado a outros oferecimentos de Kanye à dance music, prova quão empolgado YE estava. "Stronger", inclusive, pode ser encarada como o som em que Kanye aprende a lidar com os equipamentos em si.

Publicidade

Em termos de hardware, nenhuma ferramenta foi tão importante no desenvolvimento artístico de Kanye como o Roland TR-808 Rhythm Composer. Além do papel crucial desempenhado em 808s & Heartbreak de 2008, a bateria eletrônica o ajudou a criar um novo minimalismo electro-pop que mudou a rota de sua carreira como um todo, bem como do hip-hop em geral. Inspirado pelo drama gótico de baluartes do pop dos anos 80 como Gary Numan, bem como o compositor e multi-instrumentista Jon Brion, foi com esse equipo que Kanye adotou uma postura despojada, quase essencialista, ao gravar Graduation. Além das justaposições gloriosas de panoramas sonoros distorcidos e chapados com ritmos tribais e melodias épicas, o compromisso de Kanye com o auto-tune neste disso lhe deram controle total sobre o instrumento que mais define seus esforços eletrônicos — sua voz.

Quando questionado pelo implacável radialista nova-iorquino Charlamagne Tha God sobre o uso de auto-tune, Kanye disse usar o recurso, pois ele permite que sua voz faça coisas que não teria como fazer naturalmente. É uma resposta simples, mas captura a força que ele retira de sua relação com a música eletrônica. Tomemos "Hold On" como exemplo, single de 2013 do disco My Name Is My Name, do presidente da G.O.O.D Music, o Pusha T. A contribuição de Kanye aqui segue sem créditos porque ele não fez nada além de instrumentação. Sua voz — distorcida pelo auto-tune — funciona como um sintetizador, gorjeando e lamuriando por baixo de uma batida de forma a dar uma camada extra de drama à música.

Publicidade

Na sequência de 808s, Kanye disse em um debate que o auto-tune era"A coisa mais divertida de se usar!". Esta mudança estilística sinalizou o começo de um relacionamento com a nova tecnologia que segue central na criação da sua sonoridade. O crescendo arrasa-corações de "Runaway" (2010), a alegria abafada de "Only One" (2014) e os alertas gélidos de "Wolves" (2014); trata-se de um grito computadorizado que define o som de West, marcando talvez um dos mais duradouros e suaves casamentos entre hip-hop e instrumentação experimental. Kanye, ao tratar sua própria voz como "instrumento", permitiu que as linhas entre os dois mundos se misturassem de forma que não se reconheça mais tais limites. Sons como "Guilt Trip" (2013) e "Fade" (2015) (esta última com um sample de "Mystery of Love, do Mr Fingers, de 1985) trilham o caminho entre rap e música instrumental. As letras ficam de lado e a sonoridade assume o foco central.

Apesar de sempre trabalhar com novas fronteiras por meio de suas produções, Kanye forjou fortes relacionamentos com outras figuras da música eletrônica, algo capaz de transformar ambas as carreiras. Inclusive a de Hudson Mowahke, que assinou com a G.O.O.D Music como produtor dando sequência a seu trabalho com a compilação Cruel Summer, lançada pelo selo de West em 2011. A lista dos participantes desta compilação é grande demais para ser absorvida, mas trata-se do produto de um curador de pulso firme. O trampo de HudMo em "Mercy" ainda soa tão porrada quatro anos depois, e quando o TNGHT estava no ápice, sua versão feroz de "Cold"(2012) foi tão sinistra que Kanye fez até uma participação no seu show intimista no Brooklyn. Os metais sem limites do TNGHT apareceram mais uma vez Yeezus, dando a "Blood On The Leaves" (2013) seu clímax atormentado.

Publicidade

O maximalismo fornecido por HudMo era exatamente o que Kanye precisava. Enquanto artista e pessoa pública, Kanye pode muito bem ser culpado por falar demais: tentar passar cinco pontos filosóficos diferentes em uma só frase, ao mesmo tempo em que, de algum jeito, relaciona tudo com o preço da seda. Não que seus argumentos não valham nada, mas a emoção precisava ser melhor organizada — exatamente o que HudMo, dentre outros, ajudaram a fazer. O feito cumulativo de Yeezus é a canalização da frustração esmagadora e desejos pessoais conflitantes em um único som. Desde lá, HudMo figurou nos créditos de trabalhos de pesos pesados como Drake e, apesar de exigente com seus clientes, tornou-se uma das figuras mais procuradas no meio da produção do rap. Sua velocidade característica deu as bases para colaborações como "Attak" (2014) de Rustie e Danny Brown, ampliando ainda mais as margens do "rap" e diminuindo a distância entre o happy hardcore de Glasgow e a música dos clubes de Chi-town.

Com Hudson Mohawke a tiracolo, as agora famosas sessões de Yeezus em Paris contaram com um Kanye operando uma política de recrutamento de alcance ainda maior que seus esforços anteriores, transformando o disco em uma plataforma de lançamento para uma série de novos talentos subversivos. Evian Christ foi arrancado de sua vida como professor de trainees e levado a Paris para fornecer as pauladas e vocais contorcidos de "I'm In It", que apresentou ao mundo suas destruidoras e cativantes criações no Tri Angle. O DJ francês de techno Gesaffelstein subiu a bordo para colaborar com o Daft Punk em "Black Skinhead" e "Send It Up" — o que o levou subitamente ao mesmo nível de profissionalismo de Banglater e Homem-Christo. Talvez o egresso mais dinâmico de Yeezus tenha sido Arca, cujas desconstruções experimentais em trap e eletrônica só haviam aparecido nas prateleiras da UNO NYC até então. De repente, suas pedradas cerebrais e agudas características surgiram em quase metade do disco de hip-hop mais falado do ano.

As contribuições feitas por estas jovens foram a força por trás de Yeezus. Por mais que seu trabalho no disco tenha elevado o status de todos os envolvidos, os colaboradores não se definiam somente pelo que deram a Kanye West. O que eles faziam ia além de criar batidas para sua aprovação. Assim como a 808 deu forma a 808s & Heartbreak e ofereceu uma articulação sônica da temática de luto e perda do disco, as ambições ilimitadas destes produtores de vanguarda provaram ser exatamente aquilo que Kanye precisava em Yeezus – um trabalho bizarro, alienígena e raivoso num disco que buscava desafiar o status quo. É o disco definitivo em termos de suas empreitadas no dance alternativo, pois se trata da concretização de quanto as texturas digitais empoderam sua voz. Você poderia ver todas as entrevistas, ler todas as letras e estudar cada pixel da arte cuidadosamente calculada, mas até ouvir o synth pulsante de "On Sight", não terá como sacar a sinergia.

Os produtores que trabalham com Kanye raramente falam do processo. Quem é do contra pode muito bem falar que isso tudo é o rapper escondendo sua falta de envolvimento, substituindo-a por uma mística e mistério — uma equipe de influenciadores lhe dando tudo que precisa para ficar plantado no zeitgeist. Mas se você traçar sua relação com a música eletrônica diante os temas pessoais de cada disco, a conta bate. Da empolgação intergaláctica de "Stronger" às texturas ambiente de "Wolves", West é um colaborador no mais puro sentido do termo. A música eletrônica dá a Kanye exatamente aquilo pelo que sempre lutou: liberdade. Ao poder editar e modificar sem limitações ele é (ao menos em termos sonoros) onipotente. Ele olha de cima para baixo para os meros mortais, ampliando sua visão e ajustando-a até que a mensagem fique o mais clara possível através de palavras. Transmitindo sua alma através das máquinas.

Tradução: Thiago "Índio" Silva

Siga o THUMP nas redes Facebook // Soundcloud // Twitter.