Dekmantel Brasil foi o festival nota dez da classe AB
Foto: Ariel Martini/Dilvugação

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Música

O Dekmantel Brasil foi o festival nota dez da classe AB

O preço alto do ingresso teve as suas vantagens: uma produção e lineup impecáveis. E uma desvantagem: elitizou o público.

Então, se você está por aqui é muito provável que já tenha caído aí no seu radar alguma resenha orgânica do tipo "Dekmantel foi o festival nota dez". E foi mesmo. Não tem muito o que falar, na verdade: quando a produção do evento, seja ele qual for, funciona, ela fica invisível. Me desculpe o viralatismo tropical, mas temos que convir que muito MUITO frequentemente quando falamos de festivais de música no Brasil sempre acabamos falando de perrengues e situações estranhas no geral. A minha impressão é que nessas comunhões pop de grande público a música propriamente dita acaba ficando em segundo plano — os problemas da vida terrena como preço de cerveja, lama, arrastão, gente doidaça roubando brisa, seguranças despreparados, problema de som/luz/locomação e etc ocupam um espaço considerável no nosso imaginário de festivais, daí que o máximo de curtição que a gente consegue tirar de um desses eventos é reforçar o quanto aquele artista que já curtimos foi foda. Existem exceções, lógico, mas vejo esse padrão.

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Dito isso, falemos sobre o Dekmantel, que rolou no Jóquei Clube no último fim de semana, em São Paulo. Creio ter sido a primeira vez em que fui pra um festival em que havia a condição ideal para ouvir a música que estava sendo tocada. Estive lá somente no domingo e não tenho muito o que dizer sobre a produção, não, por que deu tudo certo. Não tinha fila pra entrar, ou pra comprar bebida, os preços eram normais (leve em consideração que garrafa d'água por R$ 7 é mais ou menos a norma nesses festivais maiores), a distribuição dos palcos era boa, o som bom também, tinha até uma rapaziada distribuindo protetor solar durante a tarde, que estava um sol da porra. Enfim, a produça foi invisível e competente, como ela tem que ser.

Mas, é claro, essa boa logística de funcionamento teve o seu preço (que a reportagem do THUMP não pagou pois entrou na lista de imprensa). O ingresso para o festival foi caro. A meia para um só dia era R$225 lá na porta, e para o fim de semana inteiro os preços começaram em R$250 a meia (para quem comprou o primeiro lote), e acabaram em R$400 a meia no terceiro lote. Então, do mesmo jeito que o custo do tíquete acaba condicionando as nossas expectativas em relação à condução logística do evento (pelo menos uns banheiros sem cheiro de morte), também acaba selecionando o público, que era em sua maioria uma galera pra cima dos 25 anos e branca. Lembremos: 50% do Brasil é negro, mas essa matéria de 2006 diz que no 1% mais rico do País, os negros eram 15,8% (só de curiosidade: 80% da tal nova classe média é negra).

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Nina Kraviz. Foto: Gabriel Quintão/Divulgação.

Falemos do som do Dekmantel Brasil. Foi foda sim. A nossa repórter Amanda Cavalcanti esteve lá no sábado:

Cheguei no Jockey Club um tanto atrasada, mas a tempo de pegar metade do set do Awesome Tapes from Africa, o primeiro que queria ver no sábado. Tocando pra um público pequeno e um tanto apático, Brian Shimkovitz fez um set num esquema que soava como um pen-drive-só-os-hits, sem se importar muito em mixar os sons mas mandando uma faixa foda atrás da outra. Na ânsia de ir olhar o restante dos palcos, deixei o Awesome Tapes antes do fim e fui me aventurar pelo resto do Jockey.

Peguei – por sorte – um finalzinho do set da 40% Foda/Maneiríssimo, em que Guerrinha & cia mandavam uma sonzeira tão divertida quanto os discos lançados pelo selo. Depois de fritar (nos dois sentidos – o palco UFO, onde rolou o 40% Foda, ficava num espacinho entre dois quartinhos do Jockey e o sol batia ali de um jeito desesperador) por alguns minutos, vendo um pouco do set do nova-iorquino Anthony Parasole, parti pro palco principal e tive uma boa surpresa com o sueco Kornél Kovács, que tocou um house/tech house que fazia dançar até a galera que se escondia sob a sombra da arquibancada do Jockey para escapar do sol.

Essa preocupação específica acabou cedo – lá pra umas cinco da tarde, no meio do set do Kóvacs, uma chuva torrencial empurrou uma boa parte do público, que se dividia entre o palco principal e o show classudo do Azymuth, que rolava no palco Boiler Room, pra debaixo da arquibancada definitivamente. Muita gente aproveitou a chance para curtir o ótimo e frenético set do holandês Young Marco, no palco Selectors (o único coberto). Há males que vem para o bem.

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A chuva acabou bem a tempo para que todas as atenções se concentrassem na estrela da noite, a russa Nina Kraviz. Apelando menos para a melodicidade do deep e tech house que costumamos encontrar em seu álbum e EPs e mais para batidas bem construídas e pesadas que faziam o lamaçal no chão do Jockey tremer, a DJ foi a primeira a conseguir prender minha atenção por toda a sua apresentação, que durou duas horas.

Às 20h30, todas as luzes que até então iluminavam a pista e o palco se apagaram, e eu tive que semicerrar meus olhos pra conseguir enxergar (o homem, a lenda) Jeff Mills subindo à cabine de DJ e tomando a pista de assalto com seu techno-finesse. Muito mais concentrado e melódico que o batidão de Nina, porém, Jeff teve problemas em segurar o público, que, em parte, partiu mais cedo para deixar o festival ou dar uma última volta e checar o restante das atrações que encerravam o dia – que foi o meu caso. A melhor surpresa daquele finalzinho de noite foi o holandês Tom Trago, que fechou o espaço Gop Tun tocando um hit disco atrás do outro e convidando a plateia empolgadaça a subir no palco com ele; finalmente tornando o palco um verdadeiro Boiler Room.

Sobre o domingo (foi foda também):

Eu sempre senti falta de uma aproximação maior da música eletrônica ao vivo daqui de São Paulo com o jazz, especialmente nos eventos maiores, onde acho que a diversidade bem planejada só ajuda, nunca atrapalha. Fiquei muitíssimo feliz de ter presenciado Hermeto Pascoal e sua indefectível banda no Dekmantel. O Hermeto é um dos maiores músicos vivos do mundo, a banda dele é algo que deveria entrar pra história do som mundial, e tudo isso no contexto do festival diurno com copo de vinho e gente sem camisa eu acho bom demais, sério.

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Hermetaço. Foto: Ariel Martini/Dilvugação.

Sou leigo em jazz (e música eletrônica também, oras), mas acho que o tipo de atitude que o Hermeto tem com a música — de ser algo livre, resultado do próprio amor que você tem por ela e do momento em que ela existe ali, na relação viva com o público, de um domínio técnico absoluto que resulta na liberdade total — é o que eu sempre busco nesses festivais. Menos relação de fã/ídolo e mais espontaneidade artística verdadeira, quebrar um pouco a relação de consumidor e aproveitar a disponibilidade do público ali para explorar algo novo.

O Dekmantel enquanto franquia global é justamente uma marca que balança pra cá e pra lá nessa gangorra, e consegue resultados excelentes sem parecer nem cabeçudaço e nem farofeiro. É o lugar que eu vejo como ideal para um selo (não é uma boa definição pro trabalho dos holandeses, eu sei, é mais do que isso) que quer fazer um dinheiro de verdade pero sin perder la ternura jamás, o gosto pela música propriamente dita.

E o festival em São Paulo foi um reflexo disso. Começar vendo o Hermeto, passar pelo electro-para-motéis-de-beira-de-estrada do Moodymann (que tocou um emaconhadíssimo e desacelerado "Do It Again" do Steely Dan debaixo de um solzão incrível), Fatima Yamaha com os melhores timbres do dia, Palms Trax fazendo o set da tendência, voando baixo entre o techno e o disco anos 80 slow jam, Ben UFO e Joy Orbison dando muita muita saudade de quando o Madame Satã era muito bom, e o John Talabot e o Nicolas Jaar como sendo o ponto de confluência daquela pessoa que há uns seis ou sete anos você chamaria de indie, mas ele cresceu, o tal do indie achou que era hora de perder a vergonha e abraçar a trilha incidental de loja de roupa, então veio a música eletrônica para manter a chama dele viva por mais um tempo. Eu admito que eu não piro muito no sons dos dois não, acho o Talabot econômico demais e o Jaar spiritual but not religious demais também, então tudo soa muito monótono pra mim. Mas, é aquilo: dentro do imenso universo de desgraça que o pop pode nos prover, os dois são até ótimas drogas de entrada para sensações estéticas mais pesadas ali na frente. Só vai depender da curiosidade e gosto do freguês, claro.

Em resumo, o Dekmantel foi o melhor festival de música eletrônica (desses grandes e tal, internacionais) que eu já fui por que acho que ele conseguiu criar uma sintonia verdadeira com o público frequentador da noite eletrônica paulistana, mais endinheirado, consequentemente branco e antenado, ou seja, eu e muito provavelmente você também. Ter o privilégio de receber uma edição local do renomado festival holandês é, bem, um privilégio, que tem um preço (alto), mas que traz vantagens. Fico pensando se talvez esse não seja o futuro do festivalão, cujo formato, dizem, já não está mais funcionando tão bem assim. Menos gente, uma clara e mais cínica divisão por faixa econômica, otimização da resenha (se o festival é menor é mais fácil de não dar um monte de merda e o boca-a-boca vai ser positivo), e um imperativo pop mais afinado com o público local.

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Foto: Ariel Martini/Dilvugação.

Atualização 8/2/17 19h50: Acrescentado um trecho na resenha do show do Awesome Tapes from Africa, para deixar mais claro que o texto fala sobre a sensação, e não que ele estava literalmente utilizando um pendrive.