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Música

O novo livro do DJ /rupture fará você questionar tudo o que sabe sobre a música na era da internet

O pensador, músico e escritor Jace Clayton reflete de forma crítica, mas sem ser xarope, sobre as formas como fazemos e consumimos arte no século 21.
Photo by Erez Avissar/Courtesy of the artist

Matéria originalmente publicada no THUMP US.

Neste exato momento, provavelmente em algum prédio residencial cinzento e fodido nos subúrbios de uma megacidade caótica e escaldante, há um adolescente criando batidas em um quarto, sentado diante de um computador velho, com o HD lotado de softwares de criação de música pirateados. Os resultados lo-fi, cuspidos à velocidade de uma metralhadora, talvez animem uma cena local de música, explodindo de ringtones de celulares até festas com sistemas de som improvisados. Mas, no século XXI, a distribuição de música é um animal volúvel. Apesar do fato de que a internet — e, em termos gerais, tecnologias mais baratas e acessíveis — passem a impressão de termos o mundo inteiro a um clique de distância, a música do cenário imaginado acima talvez consiga, talvez não, ultrapassar as fronteiras do bairro em que nasceu. Se conseguir, provavelmente sofrerá mutações inesperadas e desconcertantes.

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Jace Clayton — músico, escritor e crítico cultural — é fascinado por essas dinâmicas digitais e por seus antecessores analógicos. Os "o quês", "porquês", os "comos" e a política da produção de música foram temas que atraíram seus olhos e ouvidos durante pelo menos os últimos dez anos em que trabalhou como DJ /rupture e também usando o próprio nome. Mas, agora, ele está com um texto para documentar tudo isso, na forma de seu primeiro livro, Uproot: Travels in 21st-Century Music and Digital Culture, lançado neste mês nos EUA pela editora Farrar, Straus and Giroux.

Clayton é um observador arguto das tendências contemporâneas da música, e tem uma perspectiva única, podendo ver a situação de dentro e de fora, já que testemunhou muitas transformações, tanto como crítico quanto como participante. Trabalhando como DJ /rupture, Clayton saltou para o sucesso em 2001, pegando impulso na força da distribuição online de sua mix Gold Teeth Thief, de uma hora de duração e criada em três toca-discos. Seus sets, que explodem os gêneros em mil pedacinhos, baseados igualmente em expedições arqueológicas à cata de discos empoeirados e nos arquivos sem metadados dos sites que hospedam mp3, não pararam de ser requisitados desde então. Passados quinze anos, trabalhos no mundo inteiro o puseram nas linhas de frente da transição do analógico para o digital, permitindo-lhe ter uma consciência aguçada dos impactos que ela teve sobre a cultura DJ. Como jornalista de música que escreve para publicações como The Fader, n+1 e Frieze, ele já falou em primeira mão sobre sons híbridos como a cumbia digital, em Buenos Aires, a tribal, em Monterey, o pop berbere do Marrocos, e o electro chabbi, do Cairo. Como músico, ele marca presença nos dois lados da fronteira digital — adotando com relutância a discotecagem digital, depois que um acidente de automóvel destruiu sua coleção de discos numa turnê, mas também aperfeiçoando as apresentações ao vivo com a presença do guitarrista punk Andy Moor e de seu próprio conjunto musical, o Nettle, em que os ritmos mediterrâneos tradicionais se encontram com o breakcore.

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Uproot se baseia em todas essas experiências, e fornece uma abrangente série de vinhetas, riffs e mini-ensaios que o autor usa para juntá-las num todo coeso. Clayton critica o conceito de "world music", apontando para adaptações improvisadas de house, techno e hip hop que são bastante globais, mas dificilmente seriam aprovadas na avaliação de "autenticidade" feita pelos guardiões da WOMEX. Ele questiona a política do sampleamento, explicando como seu antigo entusiasmo por trechos de vocais jamaicanos em faixas de jungle dos anos 90 minguou na era da bateria e do baixo, na medida em que se transformaram em "associações clichê da masculinidade negra com a agressividade". E, enquanto a indústria musical continua em seu perpétuo estado de crise, ele espera ansioso pelas plataformas de distribuição que estão por vir. "Quero que os gigantes caiam ainda mais rápido", escreve ele, "para que possamos ver as estranhas flores que brotarão nos espaços vazios."

Colocando perguntas sem fornecer muitas respostas definitivas, Clayton pensa como um acadêmico — mas, ainda bem, não escreve como um. Sua prosa é, ainda assim, erudita, mas também lê-se compulsivamente, como um livro-jogo para nerds de música. O THUMP telefonou para conversar com Clayton em sua casa, na cidade de Nova York, pouco antes da festa de lançamento do livro, na Rough Trade do Brooklyn.

THUMP: Suas aventuras pelo mundo como DJ e jornalista de música têm um lugar de destaque nesse livro, com você contando histórias de Beirute, Monterey, Cairo, Casablanca e das ilhas berberes do Marrocos, entre outros. Caso pudesse acrescentar um novo capítulo, contando em detalhes uma investigação em primeira pessoa sobre uma cena de música digital que te deixa pilhado, de onde ela seria?
Jace Clayton: Seul. O k-pop é totalmente fascinante. O que está rolando com a música pop meio que vai entrando no cenário global. Bollywood ou Nollywood são uma referência [para entender o k-pop]. "Qual é o filme?" Você fica tipo: "É um filme de ação/aventura/comédia/romance/musical/de espionagem…" E assim por diante. No que ele tem de melhor, você encontra esses tipos de momentos no pop coreano — esse tipo de abordagem multi-estilística, mas em grande parte também uma abordagem muito carnívora e relevante do gênero, que acaba entrando na produção.

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Você percebeu a ascensão contemporânea do Auto-Tune em dois lugares aparentemente muito díspares — na música pop berbere do Norte Africano e no hip-hop comercial do sul dos EUA. Que outras tendências digitais pitorescas na manipulação de vozes existem por aí?
O software Vocaloid, que cria vozes específicas, como a Hatsune Miku, um avatar japonês. As pessoas a conhecem como um pacote de softwares. Ela tem sempre 16 anos, cabelos cor verde-piscina. E é uma estrela pop no Japão, lota estádios. Usa uma licença de software da Yamaha. Eles tinham criado um pacote de códigos chamado Vocaloid, que é basicamente um sintetizador de voz. A coisa não decolou até que eles lhe dessem um corpo anime, e assim surgiu a Hatsune Miku.

Existem convenções dedicadas a Hatsune Miku aqui nos Estados Unidos, de vez em quando ela se apresenta, mas não é uma coisa muito popular ainda. Esse é um exemplo muito interessante. As pessoas usam esse software, o Vocaloid, fazem um monte de música com ele. A programação que fazem ali é incrivelmente detalhada. Se você não presta atenção, não dá nem para perceber que aquilo é coisa feita por um robô.

Você dedica um capítulo à sua própria ferramenta digital, Sufi Plug Ins, um conjunto de softwares de criação de música baseado em noções não-ocidentais de som, e destaca alguns dos resultados imediatos no livro, como um compositor do Bahrain que enviou para você uma "vibrante faixa de noise […] Ela soava como… o caos." O que mais você ouviu de notável e que foi criado no Sufi Plug Ins?
As coisas que fazem nele na verdade ficam meio que incríveis. Um dos plug-ins é uma drum machine de aplausos — pense em palmas tipo a da música flamenca — e muitos produtores de hip-hop gostam de usá-lo. High Priest, do Antipop [Consortium] acho que foi a primeira pessoa a usar o Sufi Plug Ins num disco de vinil.

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Um baterista realmente incrível, Greg Fox, do Liturgy, e ele faz seu trabalho solo usando o nome Guardian Alien. Ele faz passar um dos fatores constantes por um arpeggiator, não ajusta nenhum dos botões de geração ou de retoque de som, e simplesmente faz uso disso de um jeito muito interessante, então ele meio que se deixa levar. Fizemos um show juntos anos atrás, e ele estava fazendo isso.

Você abre um capítulo com uma história sobre como se recusou a tocar sob um banner da Red Bull — sendo que não foi informado previamente sobre o patrocínio corporativo —, mas conclui assumindo uma postura menos militante, ou, pelo menos, com um reconhecimento de que as grandes empresas, dentre as quais a principal é a Red Bull, se tornaram grandes mecenas de experimentos empolgantes e vanguardistas na música digital. Você acha que deu uma suavizada nessa questão com o passar do tempo?
Isso é um exemplo de um capítulo que faz uma pergunta: "Como posso comunicar essa ambivalência profunda e meio que cheia de nuances que sinto em relação a tudo isso?" Suavizar, essa não é a melhor metáfora, mas com certeza me interesso por músicos que adotam, como parte do que fazem, o que eu chamo de "estética de distribuição". Onde você aparece, como a informação circula — essas coisas são importantes.

As pessoas estão rejeitando isso? É meio que empolgante e interessante. Foi tipo: "Por que correr para tocar no The Museum? Por que correr para tocar na festa do Boiler Room patrocinada pela Ray-Ban? Por que correr para ser entrevistado por um site da VICE?".

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Isso é o mesmo que fazer aquelas perguntas mais profundas, tipo: "Qual é o valor da música? Para começo de conversa, por que nos reunimos em torno da música? Quem nós queremos que inspire e estimule essas reuniões?". Não é tanto tipo: "Ah, qual a sua opinião sobre isso?". É mais para — que tipo de música você ama? Como faz para encontrá-la? O que faz para apoiá-la? É uma relação de parasitismo? É uma relação generosa? É produtiva?

Você também descreve alternativas que prosperam estando completamente separadas da atual economia da indústria de música digital, como o florescimento da cumbia sonidera no México e nas suas comunidades de imigrantes. Como os artistas desse meio tão coeso respondem ao convite para interagir com um público totalmente diferente e alheio?
De todas as conversas que tive com gente tipo os sonideros, em atividade aqui e na Cidade do México, todos se mostraram muito empolgados. Gente como o Sonido Kumbala, um dos sonideros mais antigos de Nova York, ele tocou na festa de lançamento do livro, e gosta muito da ideia. O engraçado nisso é o seguinte: e o patrocínio corporativo? Tipo, eventos como esse são totalmente comerciais. As pessoas promovem essas festas para ganhar dinheiro, é óbvio, mas há uma imensa função social que elas cumprem também. Então é isso o que lhes dá grande parte da importância. Nesse caso, ele também sabe que esses eventos têm tudo a ver com a criação de um tipo de espaço alternativo de convivência para os mexicanos das áreas mais pobres das cidades.

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Você teve uma estadia memorável na Fundação de Arquivo e Pesquisa da Música Árabe, em Beirute, e faz um contraste entre aquela imensa e opressiva biblioteca física e o arquivo digital, de uma precisão obsessiva, que apareceu online por um breve período, no serviço de compartilhamento de arquivos Oink, que teve uma vida curta. Você acha que a comunidade de música digital deve ser mais zelosa com a posteridade, sendo que usa um formato que às vezes pode parecer um tanto descartável?
Não, minha esperança seria de que os artistas embutissem essas questões em sua própria maneira de estar no mundo. Não cabe a mim dizer: "Sim, arquivem todas as mixagens, arquivem tudo, coloquem tudo online em arquivos FLAC." Obviamente, o padrão geral em relação ao streaming como um todo é preocupante, até o momento, pelo mesmo motivo que o Oink era preocupante. [O que está disponível é] somente a música que foi guiada por meio desse sistema de gravadoras comerciais, que são uma fração muito pequena do que a gente ouve em música.

Mas tenho interesse em qualquer conversa sobre: "O que significa ter acesso? O que significa se você sobe a sua edição e aí ela é tirada do ar quatro semanas depois, por uma aranha robótica que andou ouvindo o que você postou?" Como devemos cultivar as coisas que são importantes para nós? Isso pode ser um foco nos metadados, pode ser a criação do seu próprio servidor, hospedar tudo nele. Há muitas maneiras diferentes. Escrever um livro, criar pôsteres, parar de fazer qualquer tipo de som, escrever partituras. Espero que esse tipo de conversa se torne mais comum.

Nesse momento a ênfase recai sobre: "nos deem conteúdo grátis". Todo mundo quer conteúdo grátis. "Nos deem suas mixes, especialmente DJ mixes". Há uma pressão para produzir, produzir, produzir, mas aí é tipo, depois que a sua paradinha cumpriu seu [propósito] meio que promocional ou monetário, será que ainda vai ser interessante cinco minutos depois? Ela deve continuar interessante? Como você acha que está se apegando às coisas? Não existem respostas fáceis, e tudo está sempre mudando.

O livro de Jace Clayton, Uproot: Travels in 21st-Century Music and Digital Culture foi lançado pela Farrar, Straus and Giroux.

Tradução: Marcio Stockler