Kiki: a Nova Geração de Bailes Gays em Nova York

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Música

Kiki: a Nova Geração de Bailes Gays em Nova York

Por dentro da cultura adolescente mais feroz de NY, mostramos como essas festas dão a grupos de jovens LGBT um caminho para a aceitação social.

Aí em cima, um competidor na categoria "Butch Queen Vogue Femme". (Todas as fotos por Rebecca Smeyne)

"Nossa, eles estão torcendo pelas virgens?" monotonamente fala um palhaço de nariz vermelho, se inclinando no espelho do banheiro enquanto aplica tinta arco-íris no próprio rosto. Demora algum tempo até eu perceber que ela está falando dos novatos que estão em um feroz embate na competição de dança ao lado. Atrás de nós, uma estatuesca mulher transgênero vestindo um macacão colado de lantejoulas azuis está praticando seu trote para a competição de passarela, sincronizando seus passos firmes com as percussões ensurdecedoras que ecoam da pista de dança. Mais duas mulheres trans, em monstruosos modelitos, irrompem pelas portas, dando risadinhas enquanto se trancam em uma cabine toda mijada. O contraste entre essas criaturas glamourosas e o humilde ambiente que as cerca não poderia ser mais evidente - nós podemos estar em um centro comunitário na periferia, mas ao mesmo tempo estamos em um ultrajantemente extravagante baile.

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Só não é o tipo associado a museus de arte e debutantes de Park Avenue, graças a Deus. Nós estamos em uma festa kiki.

Aqui vai uma breve introdução para aqueles que ainda não viram o seminal documentário Paris is Burning (o que você está esperando?), ou apenas vagamente conhece o estilo de dança vogue através do hit de 1990 da Madonna, "Vogue." A cultura de baile vem prosperando desde o começo dos anos 70, quando as comunidades novaiorquinas negras, gays e transgênero começaram a tomar conta dos salões no Harlem para dar as mais espetaculares e suntuosas festas. Seus primeiros frequentadores desenvolveram o voguing - um estilo de dança que imita o andar e postura das modelos andando pela passarela. Os participantes mantêm fidelidade a diversas "casas" e competem por prêmios em dinheiro e troféus dourados (além de fama e glória, claro) através de batalhas de passarela, competições de dança e concursos de beleza. Mais importante ainda, os bailes dão aos marginalizados grupos de jovens LGBT ­- que frequentemente são afastados de suas casas e comunidades - um caminho crucial para a aceitação social, além de meios para expressar sua criatividade. Ah, e eles também são divertidos pra caralho.

Kikis são como a versão mais modesta da liga de juniores dos bailes "mainstream" mais impiedosos. Os participantes costumam ser jovens dos 12 aos 24 anos, que afiam suas habilidades em um ambiente menos intimidante antes de se graduarem para a liga principal. Ou, como Symba McQueen - a carismática sósia de Craig David que atua como comentarista de praticamente todas as kikis da cidade de Nova York - declara ao começo do baile: "Aqui é onde vocês praticam antes de se transformarem em borboletas e entrarem no mainstream!".

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A quadra de basquete que abriga a kiki dessa noite, chamado "The Playhouse 2: Galactic Playhouse", está decorada com a parafernalha espacial de uma formatura do ensino médio - cachos de balões brancos flutuam sobre mesas reservadas para as casas que competem, e cortinas drapeadas metálicas sobre barricadas de aço, isolando as áreas designadas para a dança. Mas tem algo que eu nunca vi em uma formatura habitual: cabines ao fundo do salão oferecendo camisinhas e testes de HIV gratuitos. O baile dessa noite foi tornado possível pelo programa de saúde da organização Housing Works; kikis são possíveis geralmente através de organizações de saúde, que usam esses eventos para se conectar com a juventude "em risco". Symba repetidamente encorajava a multidão a "se teste, saiba seu estado!" Esses lembretes dão o tom de como é vital o sistema de suporte que essas kikis dão para sua comunidade.

Em cima do palco, o DJ de ballroom Byrell the Great está debruçado sobre seu laptop e mixers ao lado da mesa dos juízes que estão, por algum motivo inescrutável, chupando pirulitos e sacudindo varinhas sinalizadoras neon. Byrell se considera a próxima geração da linhagem dos DJs de ballroom - "tem Vjuan Allure, MikeQ e eu", ele diz prosaicamente. Muito mudou desde os anos 70 e 80, quando versões dub de clássicas faixas de house e cortes elegantes de disco como "Love Break Is The Message" do The Salsoul Orchestra e "Dub Break" de Ellis D serviam como trilha sonora predominante do salão de festa. Tudo isso mudou quando os Masters At Work lançaram "That Ha Dance" em 1991, uma faixa que é desde então o DNA do som do ballroom.

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Como Vivian Host descreveu na Red Bull Music Academy Magazine, "The Ha Dance" é para o baile o que "Sing Sing" é para a cena de Baltimore ou "Pulse X" é para o grime do Reino Unido: uma música que foi fatiada em pedaços e virada do avesso em milhares de versões e remixes de bootleg." Os dançarinos amam o crash metálico da faixa, que aterrissa a cada quatro batidas e os ajuda a acertar suas poses preferidas e mergulhos de quebra a espinha no chão. Também clássico é o próprio som "Ha" em si, um sample tirado de uma cena com Eddie Murphy no filme Trocando as Bolas (sério).

"A maior mudança até agora no ballroom foi quando Vjuan Allure começou a remixar 'The Ha Dance' com sua série de battle beat, algo que me inspira muito quando estou fazendo uma faixa vogue", Byrell disse. Essas faixas prontas para a batalha que Vjuan introduziu e DJs como MikeQ e Jay R Neutron forçaram para frente eram marcadas de crus e saltitantes batidas, bumbos robustos e uma abordagem em geral mais áspera.

Estes tons mais sombrios e agressivos também calham de combinar perfeitamente com a pista de dança - logo, DJs e cabeças bem distantes da cena começaram a criar um aguçado interesse na música que vinha dela. Hoje, as fusões estão a pleno vapor, com MikeQ lançando faixas em selos formadores de gosto como Fade to Mind e Night Slugs, produtores de grime como Gage colaborando com o lendário comentarista de baile Kevin JZ. Prodigy, Boddika e Joy Orbinson sampleando o clássico vogue "Walk 4 Me" em sua faixa colaborativa "Swim", e Sinjin Hawke levando o "ha" para estranhos e distópicos territórios. Celebridades também estão pisando na cena - FKA Twigs, Rihanna, Boys Noize, Raven Symonè (do That's So Raven) e Queen Latifah todos foram vistos nos recentes bailes.

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Byrell diz ser extremamente favorável à cena de ballroom music ter seu momento sob os holofotes. "Eu amo isso. Está abrindo os olhos e mentes de muita gente. Alguém vai ouvir e ficar tipo, 'Pessoas gays não são tão ruins.' Eu gosto da forma como as pessoas fora da cultura brincam com o som". Mas ele tem problemas com DJs entrando em contato para pedir um pacote dos samples essenciais do ballroom, sem gastar o tempo necessário para entender seu contexto. "Você deve conhecer a cultura antes de pular dentro dela. Se você soubesse da cultura você saberia da onde vem estes samples. É como tentar ser um médico sem ir para a faculdade de medicina".

O próprio Byrell entrou na cena kiki três anos atras como um performer - um background que lhe deu um conhecimento instintivo do que os dançarinos precisam ouvir quando pisam no ringue. Ele e Symba são como mestres de fantoche da noite, trabalhando em conjunto para guiar e controlar a energia do salão. "DJ, me dê uma batida!", Symba comanda. Byrell ativa uma pulsante faixa de MikeQ pontuada por vocais em chinês.

"Esta é uma cena que vai te mastigar e te cuspir fora. É muito difícil montar uma casa que dure bastante, e é por isso que é importante prestar homenagem aos nossos pais", Symba anuncia, em uma das muitas ladainhas educativas que ele transmite através da noite. Mais tarde, ele descreve sua função para mim como sendo "Wendy Williams fazendo uma digressão no NFL - você precisa se lembrar dos vencedores, conhecer a história do ballroom, ter senso de humor, e ser um bom leitor de público." Eu adicionaria: ser um improvisador extremamente talentoso, sensato pacificador e um divertido mestre de cerimônias ao currículo.

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Cuidadosamente observando os dançarinos, Byrell e Symba trabalham juntos para orquestrar as condições perfeitas para eles se expressarem através da música. "Se você se cresce pra cima de uma vadia, tenha certeza que você pode quebrá-la!", grita Symba. Enquanto eu vejo os jovens dançarinos baterem seus cabelos, fazerem o passo do pato, e arquearem suas costas dramaticamente até o chão, eu me lembro que para muitos gays, transgêneros e negros, seus corpos também são campos de identificação política e social, frequentemente o foco de debates maiores que eles mesmos. Efetuando estas proezas de resistência, estes dançarinos também estão reivindicando seus corpos como seus próprios, para serem torcidos, jogados e vestidos como eles quiserem.

O baile finalmente encerra por volta das 23h30. Os grupos de amigos começam a fluir para fora do centro comunitário e para as ruas, onde vários carros de polícia já estão reunidos. "Sem brigas! Sem violência! Sem drama", brada Symba enquanto seus olhos vigilantes percorrem a multidão. "Diga nããooo ao drama!"

Veja o resto das fotos de Rebecca Smeyne de "Sharea Juicy Couture & Housing Works apresentam The Playhouse 2: Galactic Playhouse" na galeria abaixo.

Michelle Lhooq é a Editora de Features do THUMP e sua maior batedora de cabelo.

@MichelleLhooq

Rebecca Smeyne

Competitors facing the judges in the