Coletânea ‘Outro Tempo’ resgata experimentações perdidas da música brasileira
Os Mulheres Negras. Foto: Divu

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Música

Coletânea ‘Outro Tempo’ resgata experimentações perdidas da música brasileira

A holandesa Music from Memory lança neste mês compilação que cria um precioso retrato da cena experimental/eletrônica durante a abertura democrática nos anos 80.

No meio de fevereiro, a gravadora holandesa Music from Memory lança Outro Tempo: Electronic and Contemporany Music From Brazil, 1978-1992. A coletânea dá uma cavucada funda na nossa história musical e traz em sua maior parte sons obscuros em um recorte amplo que mostram como, no meio do processo de abertura democrática, um grupo de artistas misturou influências de vanguardas gringas com elementos tradicionais brasileiros — um processo que se repete continuamente, mas cujo resultado específico nesse período acabou meio esquecido.

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No meio de fevereiro, a gravadora holandesa Music from Memory lança Outro Tempo: Electronic and Contemporany Music From Brazil, 1978-1992. A coletânea dá uma cavucada funda na nossa história musical e traz em sua maior parte sons obscuros em um recorte amplo que mostram como, no meio do processo de abertura democrática, um grupo de artistas misturou influências de vanguardas gringas com elementos tradicionais brasileiros — um processo que se repete continuamente, mas cujo resultado específico nesse período acabou meio esquecido.

Afora algumas presenças mais familiares (Luhli e Lucina, Marco Bosco, Os Mulheres Negras, Piry Reis), o que mais chama atenção quando se bate o olho na lista de músicas do disco são os nomes desconhecidos. John Gómez, DJ e colecionador de vinis responsável pela compilação, conta que começou a se interessar por essa ideia particular de música brasileira depois de encontrar o álbum Brasileira de Maria Rita Stumpf no Japão.

"Já pensava em fazer uma coletânea sobre músicas que se encaixavam nesse perfil, mas isso se concretizou em conversas com Jamie Tiller [um dos donos da Music from Memory]. Nós dois amávamos a gravação do Sexteto do Beco de Kiuá, música do Sergio Souto, e piramos quando descobrimos uma versão dela com programação de bateria eletrônica", diz John. A tal versão, cantada pela soprano baiana Andréa Daltro, foi a primeira canção divulgada de Outro Tempo e dá o tom do caminho seguido no resto do disco.

Ele conta que o processo por trás da seleção e organização das músicas envolveu, além de pesquisa, um extenso trabalho de fazer conexões entre artistas, compositores e colaboradores da galera que produziu nesse período. "Na maior parte do tempo, no entanto, eu tive que confiar nos meus próprios ouvidos, já que tinha uma ideia bem clara do tipo de som que eu procurava e muitas das indicações que eu recebia não se encaixavam bem", explica. No ano passado, John passou quinze dias por aqui "ouvindo virtualmente todos os discos independentes lançados nos anos 80" para chegar à lista final das músicas presentes na coletânea.

As músicas variam bastante entre si. Há desde canções que se aproximam da MPB do período, experimentações ambient com elementos característicos brasileiros e pop cabeçudo. "Eu acho que toda a música apresentada aqui tem uma qualidade visionária. Ainda que a seleção seja diversa, os músicos estavam se comunicando entre si e procurando inspirações comuns, em selos como o ECM, art music europeia, locais como Minas Gerais, culturas musicais indígenas... Foi essa fertilização cruzada e trabalho de colaboração que moldou a lógica que amarra essas músicas", diz John.

Um bom exemplo é "Sol da Manhã", do Marco Bosco. Começa com uma exploração das possibilidades do berimbau, tipo um Naná Vasconcelos dissonante, e aos poucos vira um ambient meio dark construído em cima de sintetizadores. Não à toa, John conta no texto de apresentação da coletânea que na contracapa de um disco de Marco Bosco que comprou em uma lojinha de segunda mão ele encontrou a seguinte dedicatória: "Caro Sr. [Brian] Eno, Eu gostaria que conhecesse nosso trabalho. Nós trabalhámos com fitas e sons da natureza."

"Sol da Manhã" está no disco Fragmentos da Casa, lançado em 86 pelo selo Carmo, de Egberto Gismonti. Apesar de não ter nenhuma música sua em Outro Tempo, Gismonti é uma das figuras aglutinadoras por trás do grupo de artistas reunidos no disco e participou de algumas das gravações compiladas.

Outro nome que chama atenção — até pela escassez de informações sobre o grupo nesse mundão brabo da internet —, é o Cinema. A banda era formada por Alex Meirelles, hoje tecladista do Cidade Negra, Anabel Albernaz, Ronaldo Tapajós e Tetê Sá (estes dois últimos, pais de Jonas e Pedro Sá). Cinema lançou apenas um disco autointitulado em 85 e fez dois shows. "Sem Teto", canção deles no disco, é um pop conceitual cujos elementos vão se repetindo num movimento circular — a base poderia ser de um lado B do Tortoise numa boa.

Tetê diz que a música é uma das mais comportadas do disco do Cinema. O mais próximo do claim to fame que a banda teve, no entanto, foi a Xuxa. "Ela usava uma música nossa "Sp5 4r (Base)" nas apresentações", conta Tetê. "Mas eu acho que ela nem sabia do que se tratava."

Para Priscilla Ermel, que tem as músicas "Gestos de Equilíbrio" e "Corpo do Vento" na coletânea, o que diferencia a geração retratada aqui das anteriores é uma mudança da maneira de encarar as novidades na hora da produção. Sintetizadores, com acesso facilitado após o fim da ditadura, e gravações de campo (tanto da floresta quanto de cantos indígenas, por exemplo), não mais substituíam outros elementos na composição, mas serviam de base para criar uma nova linguagem.

Priscilla Ermel

"Eu estou refletindo sobre isso enquanto falo com você, mas se você pensar na maneira como o Fernando Falcão [também presente no coletânea] usava sons de água, não era mais um elemento qualquer, cumpria um papel muito específico", diz Priscilla. "Existia uma liberdade de criação muito grande na época."

Há uma certa nostalgia na maneira como ela se refere ao período retratado no disco. O nome "Outro Tempo" inclusive surgiu durante uma conversa de Priscilla como John. Mas isso não significa se desassociar do presente. Em várias das músicas da coletânea, é possível identificar características que ressonam com o quê a música experimental brasileira produz hoje inclusive. "Isso é o mais interessante: a possibilidade de criar uma conversa entre gerações e permitir que os mais novos deem novo sentido a coisas que nem sabíamos que estávamos fazendo", afirma Priscilla.

Outro Tempo: Electronic and Contemporany Music From Brazil, 1978-1992 será lançado em vinil duplo, com distribuição mundial pela Rush Hour. A capa é da artista brasileira Alice Quaresma.

John, que é fã de nuestra música, fez há um tempo atrás um set só com pérolas brasileiras para a Resident Advisor.

Outro Tempo: Electronic and Contemporany Music From Brazil, 1978-1992

A1 Piry Reis - "O Sol na Janela"
A2 Nando Carneiro - "G.R.E.S. Luxo Artesanal/O Camponês"
A3 Cinema - "Sem Teto"
A4 Os Mulheres Negras - "Só Quero um Xodó"
A5 Fernando Falcão - "Amanhecer Tabajara (À Alceu Valença)"
B1 Anno Luz - "Por Quê"
B2 Andréa Daltro - "Kiuá"
B3 Os Mulheres Negras - "Mãoscolorida"
B4 Bené Fonteles - "O M M"
B5 Carlinhos Santos - "Giramundo"
C1 Priscilla Ermel - "Gestos de Equilíbrio"
C2 Carioca - "Branca"
C3 Marco Bosco - "Sol da Manhã"
C4 Maria Rita Stumpf - "Cântico Brasileiro No. 3 (Kamaiurá)"
D1 Marco Bosco - "Madeira II (Mãe Terra)"
D2 Priscilla Ermel - "Corpo do Vento"
D3 Luhli e Lucina - "E Foi"

Afora algumas presenças mais familiares (Luhli e Lucina, Marco Bosco, Os Mulheres Negras, Piry Reis), o que mais chama atenção quando se bate o olho na lista de músicas do disco são os nomes desconhecidos. John Gómez, DJ e colecionador de vinis responsável pela compilação, conta que começou a se interessar por essa ideia particular de música brasileira depois de encontrar o álbum Brasileira de Maria Rita Stumpf no Japão.

"Já pensava em fazer uma coletânea sobre músicas que se encaixavam nesse perfil, mas isso se concretizou em conversas com Jamie Tiller [um dos donos da Music from Memory]. Nós dois amávamos a gravação do Sexteto do Beco de Kiuá, música do Sergio Souto, e piramos quando descobrimos uma versão dela com programação de bateria eletrônica", diz John. A tal versão, cantada pela soprano baiana Andréa Daltro, foi a primeira canção divulgada de Outro Tempo e dá o tom do caminho seguido no resto do disco.

Ele conta que o processo por trás da seleção e organização das músicas envolveu, além de pesquisa, um extenso trabalho de fazer conexões entre artistas, compositores e colaboradores da galera que produziu nesse período. "Na maior parte do tempo, no entanto, eu tive que confiar nos meus próprios ouvidos, já que tinha uma ideia bem clara do tipo de som que eu procurava e muitas das indicações que eu recebia não se encaixavam bem", explica. No ano passado, John passou quinze dias por aqui "ouvindo virtualmente todos os discos independentes lançados nos anos 80" para chegar à lista final das músicas presentes na coletânea.

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As músicas variam bastante entre si. Há desde canções que se aproximam da MPB do período, experimentações ambient com elementos característicos brasileiros e pop cabeçudo. "Eu acho que toda a música apresentada aqui tem uma qualidade visionária. Ainda que a seleção seja diversa, os músicos estavam se comunicando entre si e procurando inspirações comuns, em selos como o ECM, art music europeia, locais como Minas Gerais, culturas musicais indígenas… Foi essa fertilização cruzada e trabalho de colaboração que moldou a lógica que amarra essas músicas", diz John.

Um bom exemplo é "Sol da Manhã", do Marco Bosco. Começa com uma exploração das possibilidades do berimbau, tipo um Naná Vasconcelos dissonante, e aos poucos vira um ambient meio dark construído em cima de sintetizadores. Não à toa, John conta no texto de apresentação da coletânea que na contracapa de um disco de Marco Bosco que comprou em uma lojinha de segunda mão ele encontrou a seguinte dedicatória: "Caro Sr. [Brian] Eno, Eu gostaria que conhecesse nosso trabalho. Nós trabalhámos com fitas e sons da natureza."

"Sol da Manhã" está no disco Fragmentos da Casa, lançado em 86 pelo selo Carmo, de Egberto Gismonti. Apesar de não ter nenhuma música sua em Outro Tempo, Gismonti é uma das figuras aglutinadoras por trás do grupo de artistas reunidos no disco e participou de algumas das gravações compiladas.

Outro nome que chama atenção — até pela escassez de informações sobre o grupo nesse mundão brabo da internet —, é o Cinema. A banda era formada por Alex Meirelles, hoje tecladista do Cidade Negra, Anabel Albernaz, Ronaldo Tapajós e Tetê Sá (estes dois últimos, pais de Jonas e Pedro Sá). Cinema lançou apenas um disco autointitulado em 85 e fez dois shows. "Sem Teto", canção deles no disco, é um pop conceitual cujos elementos vão se repetindo num movimento circular — a base poderia ser de um lado B do Tortoise numa boa.

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Tetê diz que a música é uma das mais comportadas do disco do Cinema. O mais próximo do claim to fame que a banda teve, no entanto, foi a Xuxa. "Ela usava uma música nossa "Sp5 4r (Base)" nas apresentações", conta Tetê. "Mas eu acho que ela nem sabia do que se tratava."

Para Priscilla Ermel, que tem as músicas "Gestos de Equilíbrio" e "Corpo do Vento" na coletânea, o que diferencia a geração retratada aqui das anteriores é uma mudança da maneira de encarar as novidades na hora da produção. Sintetizadores, com acesso facilitado após o fim da ditadura, e gravações de campo (tanto da floresta quanto de cantos indígenas, por exemplo), não mais substituíam outros elementos na composição, mas serviam de base para criar uma nova linguagem.

Priscilla Ermel

"Eu estou refletindo sobre isso enquanto falo com você, mas se você pensar na maneira como o Fernando Falcão [também presente no coletânea] usava sons de água, não era mais um elemento qualquer, cumpria um papel muito específico", diz Priscilla. "Existia uma liberdade de criação muito grande na época."

Há uma certa nostalgia na maneira como ela se refere ao período retratado no disco. O nome "Outro Tempo" inclusive surgiu durante uma conversa de Priscilla como John. Mas isso não significa se desassociar do presente. Em várias das músicas da coletânea, é possível identificar características que ressonam com o quê a música experimental brasileira produz hoje inclusive. "Isso é o mais interessante: a possibilidade de criar uma conversa entre gerações e permitir que os mais novos deem novo sentido a coisas que nem sabíamos que estávamos fazendo", afirma Priscilla.

Outro Tempo: Electronic and Contemporany Music From Brazil, 1978-1992 será lançado em vinil duplo, com distribuição mundial pela Rush Hour. A capa é da artista brasileira Alice Quaresma.

John, que é fã de nuestra música, fez há um tempo atrás um set só com pérolas brasileiras para a Resident Advisor.

Outro Tempo: Electronic and Contemporany Music From Brazil, 1978-1992

A1 Piry Reis - "O Sol na Janela"
A2 Nando Carneiro - "G.R.E.S. Luxo Artesanal/O Camponês"
A3 Cinema - "Sem Teto"
A4 Os Mulheres Negras - "Só Quero um Xodó"
A5 Fernando Falcão - "Amanhecer Tabajara (À Alceu Valença)"
B1 Anno Luz - "Por Quê"
B2 Andréa Daltro - "Kiuá"
B3 Os Mulheres Negras - "Mãoscolorida"
B4 Bené Fonteles - "O M M"
B5 Carlinhos Santos - "Giramundo"
C1 Priscilla Ermel - "Gestos de Equilíbrio"
C2 Carioca - "Branca"
C3 Marco Bosco - "Sol da Manhã"
C4 Maria Rita Stumpf - "Cântico Brasileiro No. 3 (Kamaiurá)"
D1 Marco Bosco - "Madeira II (Mãe Terra)"
D2 Priscilla Ermel - "Corpo do Vento"
D3 Luhli e Lucina - "E Foi"