Como a Príncipe Discos Colocou a Música Suburbana de Lisboa no Mapa da Dance Music

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Música

Como a Príncipe Discos Colocou a Música Suburbana de Lisboa no Mapa da Dance Music

Um textão sobre a importância do selo lusitano que tem colocado techno, ritmos africanos e consciência sócio-política a favor de uma silenciosa revolução.

Sempre houve um fator de síndrome de choque do futuro na imprensa musical. Em meio a essa cultura clickbait, em que microcenas dão origem a artigos e "guias para iniciantes" mais rapidamente do que a sua produção pode repercutir completamente, é difícil encontrar uma revolução silenciosa.

Todas as fotos por Marta Pina.

A música que emergiu dos subúrbios que cercam a capital portuguesa era uma nova forma de energia afro-lusa quando começou a penetrar as mentes das massas no começo do milênio. As origens rítmicas de estilos angolanos, como o kuduro e a tarraxinha, foram desconstruídas e aleatoriamente reconstruídas com ajuda de softwares pirateados por uma molecada desconhecida. Os laços econômicos entre Portugal e lugares como Angola haviam deixado uma espécie de ruína sonora — influências modernas como o kwaito house e a kizomba eram sobras para a molecada dessas comunidades extremamente isoladas. Não havia regras nem receitas — apenas restos. Durante grande parte da década, produtores amadores foram excluídos dos clubes africanos por tocarem uma música considerada muito pesada. Eles haviam adotado o sincopado e as batidas das colônias, mas com uma veia rebelde. Algo destreinado, algo real.

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Leia: "Ouça o Incrível Batidão Lusófono do DJ Nigga Fox, Lançado pela Príncipe Discos de Lisboa"

Então veio a Príncipe Discos. A história da sua criação já foi contada inúmeras vezes, mas aqui vai um resumo: quatro amigos comprometidos com a evolução e preservação artística de Lisboa decidiram colocar em evidência este monstro novíssimo e multifacetado. Em vez de mantê-lo confinado aos limites dos subúrbios de Lisboa, eles queriam apresentá-lo, de maneira inalterada, a um público maior. Queriam mudar a cidade por meio de uma filosofia em vez de um redirecionamento sonoro planejado. A declaração de princípios da Príncipe era e ainda é simples. "A PRÍNCIPE é um selo de Lisboa, Portugal. É integralmente dedicado a lançar a verdadeira dance music contemporânea desta cidade, dos seus subúrbios, projetos e favelas. Novos sons, formas e estruturas, com a sua própria poética e identidade cultural. Queremos garantir que o trabalho incrível que é produzido aqui […] não continue sem ser ouvido fora de nossos clubes, celulares e casas".

Sempre houve um fator de síndrome de choque do futuro na imprensa musical. Em meio a essa cultura clickbait, em que microcenas dão origem a artigos e "guias para iniciantes" mais rapidamente do que a sua produção pode repercutir completamente, é difícil encontrar uma revolução silenciosa.

Todas as fotos por Marta Pina.

A música que emergiu dos subúrbios que cercam a capital portuguesa era uma nova forma de energia afro-lusa quando começou a penetrar as mentes das massas no começo do milênio. As origens rítmicas de estilos angolanos, como o kuduro e a tarraxinha, foram desconstruídas e aleatoriamente reconstruídas com ajuda de softwares pirateados por uma molecada desconhecida. Os laços econômicos entre Portugal e lugares como Angola haviam deixado uma espécie de ruína sonora — influências modernas como o kwaito house e a kizomba eram sobras para a molecada dessas comunidades extremamente isoladas. Não havia regras nem receitas — apenas restos. Durante grande parte da década, produtores amadores foram excluídos dos clubes africanos por tocarem uma música considerada muito pesada. Eles haviam adotado o sincopado e as batidas das colônias, mas com uma veia rebelde. Algo destreinado, algo real.

Leia: "Ouça o Incrível Batidão Lusófono do DJ Nigga Fox, Lançado pela Príncipe Discos de Lisboa"

Então veio a Príncipe Discos. A história da sua criação já foi contada inúmeras vezes, mas aqui vai um resumo: quatro amigos comprometidos com a evolução e preservação artística de Lisboa decidiram colocar em evidência este monstro novíssimo e multifacetado. Em vez de mantê-lo confinado aos limites dos subúrbios de Lisboa, eles queriam apresentá-lo, de maneira inalterada, a um público maior. Queriam mudar a cidade por meio de uma filosofia em vez de um redirecionamento sonoro planejado. A declaração de princípios da Príncipe era e ainda é simples. "A PRÍNCIPE é um selo de Lisboa, Portugal. É integralmente dedicado a lançar a verdadeira dance music contemporânea desta cidade, dos seus subúrbios, projetos e favelas. Novos sons, formas e estruturas, com a sua própria poética e identidade cultural. Queremos garantir que o trabalho incrível que é produzido aqui [...] não continue sem ser ouvido fora de nossos clubes, celulares e casas".

O primeiro grande lançamento da label veio em 2012, com I Know Who I Am, do DJ Marfox — um produtor que desde então passou a definir o movimento e a inspirar a próxima geração de músicos do selo. Havia algo fantasticamente acessível no som de Marfox, considerando que sua música era bastante inovadora. Pareciam beats afro com muito gás, um grime subaquático ou um footwork com uma carroceria cambaleante e ruidosa. Os jornalistas correram para definir o movimento com frases de efeito, mas ele estava evoluindo mais rápido do que os artigos podiam ser escritos. Photonz chegou algumas semanas depois de Marfox; uma dupla que produzia uma espécie de techno mutante e deformado, que soava mais como um dos primeiros lançamentos da Warp, de Sheffield, do que qualquer coisa que você encontraria nas prateleiras da Honest Jon. O som estava constantemente num estado de fluxo, mas nenhum compasso se desviava dos princípios originais. Este lance era real, contemporâneo e estava sendo ouvido em lugares muito distantes dos clubes de Lisboa.

Avancemos para o verão europeu de 2015. Faz 37 graus em Lisboa durante o dia e só refresca um pouco quando o sol se põe. Sexta está virando sábado, e uma fila está se formando fora do MusicBox — um lugar no bairro Cais do Sodré, onde a Príncipe faz uma festa mensal. Hoje o seu show é transmitido para todo o mundo via Boiler Room. A molecada dos subúrbios viajou até a cidade e agora faz fila para entrar no clube; estão todos amontoados em grupos pequenos e superempolgados. Quando Nidia Minaj surge para fazer o seu set, 20 minutos de reconstruções ghetto funk na potência máxima, a empolgação se transforma em uma energia similar à da música. Os fãs se debruçam no mezanino atrás do palco e balançam os braços. Então Maboku — uma das promessas mais empolgantes e de maior talento da Príncipe — sobe ao palco e faz um set percussivo mais cru, fazendo trepidar a imponente alvenaria do MusicBox.

Através das diversas mudanças de tempo e de equipamento, essa filosofia esteve presente. Quando saímos do clube, nos pegamos falando mais sobre a reação dos fãs do que sobre a música em si. As origens da Príncipe estimularam algo cru, natural e transformador. Embora o selo tenha se tornado um dos queridinhos das publicações de música eletrônica de todo o mundo, este impacto ainda parece local. Um dos quatro fundadores da Príncipe, José Moura, falou conosco sobre isso: "Uma das nossas demonstrações mais visíveis é a festa mensal no MusicBox, na qual todas as barreiras foram destruídas. Clubbers da antiga classe média, jovens e nem tão jovens assim, e pessoas de outros bairros agora estão dançando juntas, como deveria ser".

Ao explicar este impacto cultural por e-mail, José me enviou um link para um artigo de Paul Krugman, vencedor do Nobel, em que ele falava sobre a ilusão de austeridade. Há uma importância sociopolítica genuína no que a Príncipe conquistou. Não importa quão modestos possam ser, eles amplificaram as vozes daqueles que viviam em áreas isoladas e levaram essas vozes para o centro da cidade. E fizeram tudo isto apenas apresentando um som na sua forma mais autêntica. "Com o próprio selo e o seu impacto, pudemos chamar alguma atenção para esses bairros, mas é difícil ir além do hype e, de fato, ver alguma coisa ser feita para melhorar a qualidade de vida dessa população. Algumas intervenções cosméticas foram feitas (murais gigantes de arte de rua, por exemplo), mas muitos problemas urgentes ainda precisam ser resolvidos. De qualquer forma, estamos orgulhosos de ter conseguido providenciar alguns meios, por mais insignificantes que possam parecer, para que artistas tenham uma vida melhor."

O firme comprometimento da Príncipe com suas origens não impediu que o selo tivesse o apoio de outros lugares do mundo. A Warp dedicou uma série inteira aos sons pulsantes de Lisboa. Ainda na semana passada, uma nova série de festas londrinas chamada Clock Strikes 13 (uma ramificação da Hydra) anunciou que a Príncipe terá uma festa na Dance Tunnel. Os quatro fundadores da label não fizeram alarde. Esta gratidão ficou evidente até mesmo quando me dirigi a Marfox na saída do fumódromo do Corsica Studios. Ele acabou de tocar para Pinch e Riko Dan, e expliquei a ele — tão claramente quanto pude — que estava escrevendo um artigo sobre a Príncipe e que adorei o tempo que passei em Lisboa. Ele bateu no ombro do amigo e disse: "Viu só! Este cara conhece Lisboa!". Depois de um abraço empolgado, ele anotou meu nome no celular para me procurar no Facebook.

Em Lisboa, visitei a Flur, uma das melhores lojas de discos da Europa, gerenciada por José e outro fundador da Príncipe, Márcio Matos. Embora eu tenha conseguido uma cópia dos remixes do Actress x Nozinja e um remix do Ron Hardy para "Get Ready", da Patti Labelle, afora uma cópia de Impar, do Niagara — que foi prontamente removida da parede e colocada para tocar por um cliente eufórico —, a seção da Príncipe estava vazia. O dono da loja me dirigiu um olhar e voltou a catalogar os discos.

Tentar definir a Príncipe é, de muitas maneiras, errar o alvo. Quando pergunto a José sobre a sua política em relação a demos (um lançamento pela Príncipe, atualmente, pode mudar a vida de alguém), a sua resposta é simples: "Somos comprometidos com uma família de produtores cuja confiança felizmente conquistamos e cuja música nos empolga totalmente. E trabalhamos localmente, com pessoas com quem podemos falar cara a cara".

A história e energia envolvente do som do gueto de Lisboa levou a muitas comparações com o grime. Há semelhanças. O grime misturou os conflitos urbanos com a energia contrastante do dancehall e do bashment, assim como os guetos de Lisboa misturaram a sua vitalidade aos sons de Angola e Cabo Verde. Mas, assim como aconteceu com o grime, este movimento precisa de um respiro. Um artigo de jornal do início dos anos 2000 que explicasse o grime aos leitores do suplemento dominical provavelmente não citaria "1 Sec", do Novelist. Tudo que temos são as mudanças e as consequências. Se a Príncipe se manter estreitamente em sintonia com o seu espírito de autenticidade, talvez nunca consigamos colocar o seu som no papel. É isso que vale a pena celebrar, e é isso que outras publicações poderiam aprender. É um exercício tanto de foco quanto de curadoria. Mesmo após anos lançando artistas e sendo pioneira de um legado, esta revolução silenciosa pode estar apenas começando.

Veja mais sobre a Príncipe no Wordpress e no Bandcamp da label.

Siga o Duncan no Twitter

Tradução: Fernanda Botta

O primeiro grande lançamento da label veio em 2012, com I Know Who I Am, do DJ Marfox — um produtor que desde então passou a definir o movimento e a inspirar a próxima geração de músicos do selo. Havia algo fantasticamente acessível no som de Marfox, considerando que sua música era bastante inovadora. Pareciam beats afro com muito gás, um grime subaquático ou um footwork com uma carroceria cambaleante e ruidosa. Os jornalistas correram para definir o movimento com frases de efeito, mas ele estava evoluindo mais rápido do que os artigos podiam ser escritos. Photonz chegou algumas semanas depois de Marfox; uma dupla que produzia uma espécie de techno mutante e deformado, que soava mais como um dos primeiros lançamentos da Warp, de Sheffield, do que qualquer coisa que você encontraria nas prateleiras da Honest Jon. O som estava constantemente num estado de fluxo, mas nenhum compasso se desviava dos princípios originais. Este lance era real, contemporâneo e estava sendo ouvido em lugares muito distantes dos clubes de Lisboa.

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Avancemos para o verão europeu de 2015. Faz 37 graus em Lisboa durante o dia e só refresca um pouco quando o sol se põe. Sexta está virando sábado, e uma fila está se formando fora do MusicBox — um lugar no bairro Cais do Sodré, onde a Príncipe faz uma festa mensal. Hoje o seu show é transmitido para todo o mundo via Boiler Room. A molecada dos subúrbios viajou até a cidade e agora faz fila para entrar no clube; estão todos amontoados em grupos pequenos e superempolgados. Quando Nidia Minaj surge para fazer o seu set, 20 minutos de reconstruções ghetto funk na potência máxima, a empolgação se transforma em uma energia similar à da música. Os fãs se debruçam no mezanino atrás do palco e balançam os braços. Então Maboku — uma das promessas mais empolgantes e de maior talento da Príncipe — sobe ao palco e faz um set percussivo mais cru, fazendo trepidar a imponente alvenaria do MusicBox.

Através das diversas mudanças de tempo e de equipamento, essa filosofia esteve presente. Quando saímos do clube, nos pegamos falando mais sobre a reação dos fãs do que sobre a música em si. As origens da Príncipe estimularam algo cru, natural e transformador. Embora o selo tenha se tornado um dos queridinhos das publicações de música eletrônica de todo o mundo, este impacto ainda parece local. Um dos quatro fundadores da Príncipe, José Moura, falou conosco sobre isso: "Uma das nossas demonstrações mais visíveis é a festa mensal no MusicBox, na qual todas as barreiras foram destruídas. Clubbers da antiga classe média, jovens e nem tão jovens assim, e pessoas de outros bairros agora estão dançando juntas, como deveria ser".

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Ao explicar este impacto cultural por e-mail, José me enviou um link para um artigo de Paul Krugman, vencedor do Nobel, em que ele falava sobre a ilusão de austeridade. Há uma importância sociopolítica genuína no que a Príncipe conquistou. Não importa quão modestos possam ser, eles amplificaram as vozes daqueles que viviam em áreas isoladas e levaram essas vozes para o centro da cidade. E fizeram tudo isto apenas apresentando um som na sua forma mais autêntica. "Com o próprio selo e o seu impacto, pudemos chamar alguma atenção para esses bairros, mas é difícil ir além do hype e, de fato, ver alguma coisa ser feita para melhorar a qualidade de vida dessa população. Algumas intervenções cosméticas foram feitas (murais gigantes de arte de rua, por exemplo), mas muitos problemas urgentes ainda precisam ser resolvidos. De qualquer forma, estamos orgulhosos de ter conseguido providenciar alguns meios, por mais insignificantes que possam parecer, para que artistas tenham uma vida melhor."

O firme comprometimento da Príncipe com suas origens não impediu que o selo tivesse o apoio de outros lugares do mundo. A Warp dedicou uma série inteira aos sons pulsantes de Lisboa. Ainda na semana passada, uma nova série de festas londrinas chamada Clock Strikes 13 (uma ramificação da Hydra) anunciou que a Príncipe terá uma festa na Dance Tunnel. Os quatro fundadores da label não fizeram alarde. Esta gratidão ficou evidente até mesmo quando me dirigi a Marfox na saída do fumódromo do Corsica Studios. Ele acabou de tocar para Pinch e Riko Dan, e expliquei a ele — tão claramente quanto pude — que estava escrevendo um artigo sobre a Príncipe e que adorei o tempo que passei em Lisboa. Ele bateu no ombro do amigo e disse: "Viu só! Este cara conhece Lisboa!". Depois de um abraço empolgado, ele anotou meu nome no celular para me procurar no Facebook.

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Em Lisboa, visitei a Flur, uma das melhores lojas de discos da Europa, gerenciada por José e outro fundador da Príncipe, Márcio Matos. Embora eu tenha conseguido uma cópia dos remixes do Actress x Nozinja e um remix do Ron Hardy para "Get Ready", da Patti Labelle, afora uma cópia de Impar, do Niagara — que foi prontamente removida da parede e colocada para tocar por um cliente eufórico —, a seção da Príncipe estava vazia. O dono da loja me dirigiu um olhar e voltou a catalogar os discos.

Tentar definir a Príncipe é, de muitas maneiras, errar o alvo. Quando pergunto a José sobre a sua política em relação a demos (um lançamento pela Príncipe, atualmente, pode mudar a vida de alguém), a sua resposta é simples: "Somos comprometidos com uma família de produtores cuja confiança felizmente conquistamos e cuja música nos empolga totalmente. E trabalhamos localmente, com pessoas com quem podemos falar cara a cara".

A história e energia envolvente do som do gueto de Lisboa levou a muitas comparações com o grime. Há semelhanças. O grime misturou os conflitos urbanos com a energia contrastante do dancehall e do bashment, assim como os guetos de Lisboa misturaram a sua vitalidade aos sons de Angola e Cabo Verde. Mas, assim como aconteceu com o grime, este movimento precisa de um respiro. Um artigo de jornal do início dos anos 2000 que explicasse o grime aos leitores do suplemento dominical provavelmente não citaria "1 Sec", do Novelist. Tudo que temos são as mudanças e as consequências. Se a Príncipe se manter estreitamente em sintonia com o seu espírito de autenticidade, talvez nunca consigamos colocar o seu som no papel. É isso que vale a pena celebrar, e é isso que outras publicações poderiam aprender. É um exercício tanto de foco quanto de curadoria. Mesmo após anos lançando artistas e sendo pioneira de um legado, esta revolução silenciosa pode estar apenas começando.

Veja mais sobre a Príncipe no Wordpress e no Bandcamp da label.

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Tradução: Fernanda Botta