O techno de rua marca a segunda leva da cena eletrônica de Belo Horizonte

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Música

O techno de rua marca a segunda leva da cena eletrônica de Belo Horizonte

A capital mineira, que já foi chamada de meca da música eletrônica, está vivendo um momento de revival.

O boca a boca da cidade diz que no final dos anos 1990 e começo dos anos 2000, Belo Horizonte era considerada a meca da música eletrônica. Não porque BH estivesse repleta de atrações fora do eixo Rio-São Paulo, mas mais porque o entusiasmo do público fazia com que as festas nessa época fossem grandes acontecimentos na cena de house, techno e drum'n'bass, atraindo até gente de outras capitais. Os DJs Marky, Renato Cohen, Laurent Garnier, Mark Farina, Mau Mau, Nego Mozambique e Maurício Lopes eram alguns dos que esquentavam as pistas fervidas de BH, sem contar nos nomes locais, ainda em atividade, como Robinho e Anderson Noise.

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Brayhan Hawryliszyn, que hoje tem 34 anos, conta que virou designer gráfico por causa dessa cena de música eletrônica. Na época, ele fazia flyers para as festas dos amigos, e assim desenvolveu as habilidades que hoje viraram profissão. Brayhan viveu intensamente o momento clubber de quase 20 anos atrás. Em seu repertório de causos estão festas que vivem na memória de BH, em locais como o terraço do antigo Central Shopping, um frigorífico desativado, o túnel do Ponteio Lar Shopping, o próprio Ponteio quando ainda em obras, estações de metrô e até mesmo o Aeroporto de Confins.

Em 2002, quando a cena estava bombando e havia várias festas semanais acontecendo, Brayhan e um amigo ficaram encarregados de produzir uma festa no extinto Club:e, com a presença do DJ e produtor alemão Alexander Kowalski. O evento aconteceu numa quinta-feira, e na sexta e no sábado a galera levou o gringo para um sítio para curtir uma natureza e botar um som para os amigos, sem compromisso. Brayhan conta que Kowalski pirou nas cachoeiras e em dar bananas para os micos que viviam no lugar. No sábado, uma tempestade com raios e trovoadas fez o cara dar uma sumida, mas até aí nada de estranho, já que ele era o mais careta da turma.

Um tempo depois, Brayhan recebeu uma mensagem do DJ falando do quanto ele tinha amado Belo Horizonte e o fim de semana que passou na cidade. Kowalski ainda mandou para o Brayhan e os amigos de BH vários mimos do selo Kanzleramt e um disco que levava o nome da cidade — o lado B se chamava "Lightning Field". O DJ contou para o THUMP que já tinha tocado uns sketches dos sons nos set aos vivo que fez por aqui, mas que só finalizou as tracks quando voltou para a Alemanha — e que Belo Horizonte mereceu a homenagem.

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Com o tempo, as festas foram migrando para os clubs dedicados ao nicho, e no decorrer dos anos 2000, elas foram se popularizando e mudando de público, se tornando homogêneas. Nos últimos anos, a vida noturna em Belo Horizonte se tornou bastante comercial. Os clubs e produtores se acomodaram nos modelos que garantiam bilheteria e há muito tempo não havia nada de novo acontecendo. Em termos de música eletrônica de nicho, o que estava rolando era a escassez. Nenhum lugar oferecia espaço para o novo e o diferente, de forma que tanto os fãs de música eletrônica alternativa quanto as pessoas que queriam descobrir coisas novas não tinham para onde ir. A galera também estava se sentindo refém dos preços abusivos para entrar nas boates e consumir dentro delas.

Brayhan diz que foi se cansando da cena, e que o EDM, para ele, foi um câncer na música eletrônica. "Pegaram o que tem de pior no eurotrance, no techno, no rock e fizeram um troço novo", comenta. Mas a relação do Brayhan com a música tem mudado com o surgimento de coletivos independentes na cidade.

De um ano pra cá, uma outra geração vem redescobrindo o techno livre de rótulos e de forma muito experimental. Os coletivos Masterplano e 101Ø têm feito com que Brayhan e várias pessoas estejam saindo de casa sem o peso da obrigação social e sim para curtir música boa e pistas animadas.

Masterplano

A primeira Masterplano aconteceu num sábado de junho de 2015. O evento foi anunciado no perfil do Facebook dos membros do coletivo algumas horas antes e apenas alguns amigos dos DJs e organizadores compareceram. A festa acabou cedo, pois ninguém havia fechado direito um acordo com o dono do bar que estava cedendo a energia para os equipamentos de som, e ele quis fechar o estabelecimento por volta de 1h da manhã. Já a segunda festa aconteceu um mês depois.

Dessa vez eles fizeram um evento na rede social, que dava poucos detalhes do que efetivamente iria rolar na noite, somente algumas pistas. Foi o suficiente para deixar as pessoas curiosas e gerar um burburinho nos chats privados e nos bares ao redor da cidade.

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O lugar da segunda Masterplano foi o mesmo da primeira festa, mas dessa vez muito mais gente apareceu para conferir. Além do som, muito diferente do que essa geração está habituada (o exaustivo divas-pop-auto-tune dos inferninhos), havia um jogo de luz inusitado para uma rua que é via para ônibus intermunicipais, e uma instalação inflável onde as pessoas poderiam entrar. Foi tudo surreal para uma área que fica deserta à noite, salvo por alguns bares que vendem litrão de cerveja barato e cachaças de procedência duvidosa. Ninguém entendeu direito, mas todo mundo amou.

A ideia das festas surgiu da necessidade de uma alternativa de entretenimento. De acordo com Thyer Machado, um dos DJs do coletivo, o Masterplano surgiu de forma espontânea. "Fazíamos festas em casas de amigos, e a cada vez aparecia mais gente, mais conexões eram formadas e mais pessoas descobriam um gosto em comum pela música. Começamos a pensar que seria possível criar um movimento mais abrangente na cidade, fazer festas para mais gente, na rua mesmo."

O Masterplano comemorou um ano de existência em grande estilo. Cerca de 1600 pessoas foram à festa que aconteceu em uma antiga fábrica de açúcar, que hoje funciona como um estacionamento, também no centro da cidade.

O coletivo hoje é composto por 15 pessoas, muitos são DJs com diferentes níveis de experiência, mas nem todos os membros discotecam. Todos ajudam na produção, eles geralmente se dividem em grupos de trabalho e dividem as tarefas e funções de acordo com a demanda dos eventos. Uma tática que o coletivo usa é a de cobrar entrada festa sim, festa não. Foi um jeito que o Masterplano deu para democratizar o rolê e continuar custeando os eventos sem pesar demais para os membros na hora da organização.

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101Ø

A 101Ø também surgiu de forma bastante orgânica e, inicialmente, como um apêndice do coletivo Masterplano. Alguns amigos e membros do Masterplano dividiam um apartamento no edifício de número 1010, na Rua da Bahia, quando surgiu a ideia de produzir uma festa para ajudar com os custos do aluguel. O evento reuniu cerca de 200 pessoas em um terraço no centro da cidade. Eles contam que o lucro foi o suficiente para pagar o aluguel daquele mês e comprar um pouco de comida.

Desde então, a 101Ø se emancipou do outro coletivo, e vem produzindo festas em terrenos baldios, estacionamentos, galpões e vias públicas, além de um e outro evento em espaços mais tradicionais. Uma das festas mais icônicas aconteceu no Viaduto da Bicicletinha, na Avenida dos Andradas, às margens do Rio Arrudas. Em conjunto com o coletivo Arruaça, de Porto Alegre, a 101Ø montou pickups, um bar e fez projeções no viaduto para um público de aproximadamente 700 pessoas, que dançaram até de manhã — quando a polícia apareceu ameaçando recolher todo o equipamento, caso a festa não acabasse imediatamente.

A polícia já tinha dados as caras nas festas de rua antes, mas foi a primeira vez que interviu. No evento organizado pela 101Ø no dia 16 de setembro, as forças vigilantes se mostraram muito mais tolerantes. O coletivo montou o sistema de som em uma rua que dá acesso à Praça da Estação e logo chegou a Guarda Municipal com sete carros questionando sobre alvarás, que eles não tinham. Os guardinhas então sugeriram, muito gentilmente, que a galera mudasse a festa para uma outra rua, debaixo do Viaduto da Floresta.

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Por volta de 1h da manhã a 101Ø estava rolando já com a pista cheia, e dessa vez foi a PM que apareceu para dar uma conferida. Marcelo Hoehne, membro do coletivo, conversou com os canas, que também foram supreendentemente compreensivos, e a 101Ø prosseguiu até as 7h30 da manhã, quando os fiéis do Templo dos Milagres se incomodaram com o barulho e o agito. A festa do dia 16 aconteceu numa rua onde também fica a entrada da igreja. Os PMs acionados pelos crentes deixaram a galera tocar mais duas músicas antes de encerrarem o expediente.

Assim como em outras edições, o coletivo fez o bar do evento em uma tenda e pediu para que o público comprasse suas bebidas por lá para dar uma força no rolê. Para facilitar, eles resolveram vender tudo a R$5 — a cerveja, o copo de catuaba e duas águas. A escolha do local se deu apenas dois dias antes. Foi o mesmo que uma saideira de última hora, no dia seguinte à festa no Viaduto da Bicicletinha, para aproveitar mais um pouco a presença dos DJs de Porto Alegre. Como funcionou, eles repetiram a dose. É na base do improviso e do que eles chamam de "desorganização do evento" que a 101Ø se mantém, aprendendo com seus erros e acertos, e ocupando as ruas.

A segunda leva e o resgate da música e dos espaços alternativos

Brayhan não vê muita diferença na cena de hoje e naquela que viveu na primeira onda do techno em BH. "A montação é a mesma, o público gay, o nível de produção" ele comenta, até a escolha dos lugares lembra muito a primeira leva. Brayhan também gosta de que as festas sejam feitas por amadores e não produtores profissionais, e admira o baixo custo para o público. Enquanto as festas do Masterplano, quando cobradas, custam entre dez e quinze reais, nas baladas eletrônicas se paga por volta de R$70 só para entrar.

O resgate cultural não é só da música eletrônica, mas também do uso de espaços alternativos. De acordo com Tiago Gamaliel, consultor e pesquisador de tendências — e uma das figurinhas mais carimbadas das festas de techno de BH, pela primeira vez uma geração muito urbana, que nasceu e cresceu na cidade, começou a enxergar a rua como uma barreira a ser vencida. Ele diz que para quem aprendeu com os pais que a rua é perigosa, ocupar a cidade é um jogo de poder. Há uma vontade de ocupar lugares que sempre foram proibitivos, de existir onde a cidade fala que a gente não pode existir. É por isso que arquitetos, designers e artistas plásticos fazem parte dessas festas, seja dentro dos coletivos ou como público da pista.

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Izabela Egídio, membro da 101Ø, também acredita na ressignificação dos lugares. Ela ainda acrescenta que, quando fizeram festas em espaços mais convencionais, o rolê não deu muito certo. "A gente gosta é de lugar estranho mesmo", diz.

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A 101Ø comemora um ano com uma festa no dia 5 de novembro, e o Masterplano tem um agito marcado para o dia 19 com o TETO PRETO, de São Paulo. Os ingressos para os dois eventos podem ser comprados antecipadamente no Sympla.

Veja abaixo mais foto da 101Ø no Viaduto da Floresta.

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