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Música

Uma balada LGBT de São Paulo está sendo acusada de transfobia

Transexuais e travestis falaram ao THUMP que se sentiram discriminadas depois de pagarem valores três vezes maiores pelos ingressos da Cantho Club, uma boate localizada no centro de São Paulo.
Foto por Anna Mascarenhas.

A noite sempre foi um lugar de diversidade. Não à toa a história da música eletrônica e da comunidade LGBT se entrelaçam mais que do que apenas coincidentemente — do Club Kids de Michael Alig à cultura queer que vem se desenvolvendo numa cena mais underground da dance music, a noite sempre foi, e continua sendo, um lugar de todos e nem mesmo os ataques à Pulse, em Orlando, irá mudar isso. Aqui no Brasil, o país onde mais se mata travestis e transexuais no mundo, a importância dos clubes para a comunidade LGBT extrapola a questão identificação ou o próprio conforto: a pista é também um lugar onde essas pessoas estão a salvo. Num dos poucos espaços onde poderiam se sentir aceitas, porém, travestis e mulheres transexuais estão sendo alvo de discriminação.

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A denúncia surgiu da ativista trans Viviany Beleboni, conhecida por ter sido "crucificada" na parada LGBT de 2015. Viviany divulgou na sua página no Facebook que a boate Cantho Club, balada famosa na noite gay paulistana, estava cobrando das mulheres transexuais e travestis quase o triplo do valor comum de uma entrada. Ela soube da discriminação de valores por uma amiga que mora com ela, Sabrina C., travesti de 24 anos.

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Sabrina foi à Cantho há oito meses e já tinha ouvido falar que o ingresso estava mais caro para as travestis, mas achou que isso estava acontecendo só nas festas à noite, que tinham como alvo o público gay masculino — como a festa que ela iria era um afterparty, não achou que teria de pagar mais. Chegou na boate com mais uma amiga trans e três amigos homens gays, que pagaram R$ 30 a entrada ou R$ 65 de consumação. Na vez de Sabrina, porém, ela foi informada que o valor do ingresso era de R$ 100 pela sua entrada ou R$ 150 pela consumação. Quando contestou, o gerente lhe disse apenas que aquele era o valor da casa.

"Já ouvi dizer que ele [o gerente] é um dos donos. Falei que chamaria a polícia e ele respondeu: 'Pode chamar. A casa é minha e os preços quem resolve sou eu. São normas da casa.' Ele foi bem bruto comigo. Meus amigos todos entraram, eu estava de carro com eles. Então entrei também, paguei o valor. Não fui na polícia porque achei que não ia dar nada", conta Sabrina. Comentando com amigas, mais tarde, ela descobriu que o boato que corria é que algumas travestis foram pegas roubando e drogando os frequentadores da Cantho; por isso, o aumento no ingresso. "Mas não é só travesti que faz isso. Já perdi celular na balada, mas não sei se me roubaram. [O aumento nos ingressos] é pra cortar as travestis dali. É preconceito", diz ela, que, até o ocorrido, pagava como mulher a entrada da boate.

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O relato de Viviany no Facebook sobre a discriminação vivida por Sabrina atraiu vários comentários — de amigas a desconhecidos — em suas redes sociais. Entre elas, estava a sul-matogrossense Laryssa Hoffmann, de 26 anos, que esteve em São Paulo para ir à última edição da parada LGBT de 2016, no domingo, 29 de maio. Laryssa queria conhecer o nightlife LGBT de São Paulo e foi à Cantho na noite de domingo pra segunda, acompanhada de sete amigos: um casal hétero e cinco amigos gays. Chegando lá, Laryssa teve de pagar um valor muito acima de todos eles: "Se a casa tivesse cobrado de mim o preço da mulher ou do homem, eu não ligaria. Mas eles cobraram R$ 150."

Quando questionou a atitude da casa, o gerente a disse que o valor diferenciado era porque aquela festa não era direcionada ao público trans. Segundo Laryssa, porém, a festa era a Private, que não especifica público. "Foi uma desculpa esfarrapada que eles tentaram dar. E o gerente me tratou com bem pouco caso, quando eu comecei a indagar ele, ele falou desse jeito pra mim: 'Você vai querer entrar ou não vai?'", diz. Para que Laryssa não fosse embora, um amigo teve de pagar sua entrada.

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A decepção de Laryssa foi a mesma de Dany Meireles, de 21 anos, que foi à boate mais recentemente, no último dia 19. A travesti conta que frequentava a Cantho desde que se mudou de Belém do Pará a São Paulo, há dois anos e meio, e parou porque tinha ouvido falar sobre o aumento do preço; mas conversou com algumas amigas travestis, que a disseram que a situação já tinha se normalizado.

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Chegando lá, porém, foi cobrado dela e de sua amiga, também trans, um ingresso no valor de R$150. Dany ficou sem entender, e a recepcionista a explicou que as trans e travestis teriam que colocar o nome previamente numa lista para pagar o preço "comum". "Além de pegar a gente de surpresa, é desagradável. Todos os meus amigos já estavam lá dentro, eu ia ficar sozinha lá fora? O povo já fala mal da gente, se eu fosse fazer um escândalo as pessoas iam falar 'ah, é travesti mesmo'. Pra evitar, eu entrei, mas já cortou toda a minha diversão", conta.

Dentro da boate, Dany descobriu que teria de pagar mais R$100 pela pulseira do camarote. Quando pediu pra conversar com o gerente, ela foi informada de que ele não estava na casa. Chateadas com a situação, ela e sua amiga, Juliana Chagas, tiraram fotos de suas comandas para divulgar mais tarde.

Diante as acusações, a Cantho Club divulgou um comunicado em sua página no Facebook, no qual se limita a dizer que os preços são cobrados pelo tipo de festa e o público que que a festa especifica — no entanto, as travestis alegam que não pagaram o preço de homem (no caso de uma festa gay) ou de mulher (no caso de uma festa lésbica), mas um bem mais alto em ambos os casos. Tendo recebido este comunicado como resposta quando os questionei sobre a discriminação de gênero na balada, perguntei à Cantho novamente se eles teriam interesse em comentar os casos específicos denunciados pelas personagens desta matéria. A resposta, porém, foi negativa: "Obrigada por entrar em contato antes de publicar a matéria, contudo todos os esclarecimentos já foram feitos anteriormente."

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Segundo o advogado especializado em direitos LGBT Thales Coimbra, a atitude da boate Cantho fere tanto a Constituição Federal, que proíbe tratamento discriminatório com base no sexo ou identidade de gênero, quanto o Código de Defesa do Consumidor, que veta práticas abusivas da parte de prestadores de serviços. "Se a boate cobra R$60 dos homens gays e R$150 das travestis e mulheres transexuais, é um valor 150% maior, o que configura, ao meu ver, uma prática discriminatória e abusiva", esclarece.

O maior desapontamento das frequentadoras é não estarem seguras mesmo num espaço supostamente LGBT. "A gente já não tem um conforto numa balada hétero. A gente vai numa balada LGBT pra se sentir melhor e ainda tem que pagar R$150, sabendo que a pessoa está cobrando isso porque não quer que você vá", desabafa Dany. "O grupo LGBT já é um grupo inferiorizado. Quando uma boate toma uma atitude dessa, é como se ela tivesse reproduzindo o preconceito que a sociedade já tem contra o movimento", conclui Laryssa.

*Se você foi vítima ou conhece alguém que sofreu com cobranças abusivas na Cantho ou em outro clube, é possível denunciar o caso na Antra, Associação Nacional de Travestis e Transexuais. Você também pode denunciar o ocorrido no Ministério Público do Estado de São Paulo.

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